sábado, 19 de outubro de 2013

SALTO PARA A VIDA

Nota de advertência: Este texto de Leo Ricino não deve ser lido entre um cafezinho e outro, mas sim com vagar, atenção. Sua beleza não está no fato em si, mas, sim, oculta nas entrelinhas, na forma como Leo brilhantemente entremeou e teceu as palavras dando forma ao significado. Provavelmente você chegará ao final deste relato assim como eu: boquiaberto, estarrecido, sem palavras para defini-lo. 
Por Leo Ricino*



            Sete horas! São só vinte e cinco andares! Segundos daqui ao meu buscado e inevitável destino! Meus ouvidos já tinham se alegrado ao som de Elvis nesta cinzenta manhã fria de junho de 1990, 08 de junho.                       

Minha existência física tem só dezessete anos, mas..., oh! Deus! Quanta insatisfação! Quanta indefinição!  Quanta falta de perspectiva, de amor! Quanto falta de... vida! Eu jamais me entendi, jamais me achei, nunca me aceitei! Cadê meu pai? De há muito já nos abandonara, a mim e à minha mãe! Sim, foi abandono. Porém, a meus olhos de hoje, talvez tenha sido fuga! Nunca cri que tenha sido por outra! Digamos: ele enrabichou, olhou bem a aparência de minha mãe e foi atrás da outra! Nada, não foi mesmo isso!       
Já estou no vigésimo primeiro, brisa fresca, mas, curiosamente, pouquíssimo ar. Deve ser a velocidade da queda! Sinto-me sufocar!   
        
                          
         
Só depois de um ano que ele partiu é que conheci a nova do meu pai, agora sim a outra. Meu pai me apresentou num almoço. Nós três. Bonita, uns trinta anos. Muito diferente de minha mãe, velha, muito velha aos trinta e cinco! Eu tinha uns dez e ainda me lembro daquele rosto cheio de ódio. De mal com a vida! Não se amava! Bêbada a maior parte do tempo! Sim, já era velha aos trinta e cinco!
Herdei dela a apatia, aliás tudo foi herdado dela. Esse desapego, esse desamor! Essa rejeição a tudo e a todos! Tudo dela! DNA puro! Eu, como ela, não amava a vida. Amigos?! Nem um sequer! O que querem da gente? Desleixo, desamor, desapego! Esse era eu, essa era minha mãe.
Nossa! Que rápido! Décimo primeiro andar já! Como eu era na escola? Ora, como poderia ser!? O mesmo desapego, o mesmo desamor, o mesmo desalento! A mesma rejeição! Desleixado! Sempre sugando o nariz, aquele barulho nojento de nariz escorrendo a vida toda! Amigos ali?! De novo pergunto: como poderia tê-los? Imponderável! Colegas? Os colegas me evitavam, e com razão!                                           A diretora era uma patricinha mais interessada em bobagens, na sua própria aparência. Pobre coitada, mal sabe que a vida é um fardo sem compensação. Beleza! Aparência! Coisas de gente fútil!                            
O coordenador, pobre dele, até que me deu atenção durante um tempo, todavia eu percebi logo que ele começou a desistir de mim, havia outros que precisavam dele. Pau que nasceu torto, imprestável, com mais recaídas que estabilidade. Perder tempo comigo!                                                                                                            
Quinto andar! A mesma brisa, a mesma falta de ar! A mesma sensação de sufoco extremo! Meu corpo já está efetivamente morto! Não faço ideia do que me espera lá embaixo. O diabo, para minha angústia, foi que de todos os sentimentos fugidos de mim, dois não conseguiram escapar e se agarraram a meu ser: um vazio esquisito e vergonha.   




Sou, era, mesmo contraditório! Como um sujeito sem amor à vida, sem amor a nada, desapegado de tudo e de todos, pode sentir vergonha!? Aquele pedreiro me olhando com escárnio, como que colocando tijolo por tijolo sobre mim, zombeteiro pela sua conquista; o eletricista ria e respingava faíscas da vitória quando passava por mim; o faxineiro, ao cruzar comigo, só via lixo; um dos porteiros do enorme condomínio onde eu morava também tinha seus ‘méritos’ e abria o sorrisão da vitória: os quatro pegaram a mesma mãe, a bêbada mãe! Se achavam com tal feito! Sei lá o que viam de glória em pegar uma que qualquer um pegava!                                                                         
Hoje mesmo, quando eu tomava meu café matinal de despedida e ouvia meu inseparável Elvis, o único ser que me manteve preso à vida por dezessete anos, o eterno Elvis, ela já tinha bebido meia garrafa de vodca.                           
Cheguei! Meu corpo morto se estatelou no gramado! 




O coordenador da escola foi o primeiro a chegar, esbaforido.  Cobre o que restou de mim com as notícias do dia! Amanhã serei notícia também! O movimento crescendo. Vizinhos, curiosos; a mãe, agora lúcida e desgrenhada, se desespera, mais gente, muita gente. Começo a me afastar de tudo! Flutuo e volto ao vigésimo quinto andar. Espaço, éter, sinto-me leve, invadido por uma felicidade jamais sentida! Grande recepção! Me esperavam há dezessete anos! Abracei-os, sorrimos cúmplices e fomos viver!

*Leo Ricino é mestre em Comunicação e Letras, professor da Fecap e instrutor na Universidade Corporativa Ernst & Young de São Paulo, além de incansável colaborador das revistas CP Língua Portuguesa e CP Literatura.

Fevereiro de 2011


Revista em 09/10/13

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