O JEITO PÓS-MODERNO DE BRÁS CUBAS
POR ROBERTO
SARMENTO LIMA*
Narrador privilegiado, porque fala após a morte, sem ter de esconder nada
de sua verdadeira personalidade, Brás Cubas apresenta, já no século XIX, traços
de uma tendência que mais tarde se convencionaria chamar de pós-moderna
Para quem acha que
já se disse tudo, ou quase tudo, sobre Memórias
Póstumas de Brás Cubas, penso que estou vendo mais alguma coisa que ainda
não foi seriamente trabalhada (nem é meu propósito avançar muito na proposta, no
exíguo espaço que tenho aqui, limitando-me a lançar pistas). Não quero
antecipar nada por enquanto, mas, sim, ir detectando pouco a pouco os rastros
deixados pelo defunto-autor. Talvez o título deste ensaio já denuncie meu
projeto de estudo; mas o que na verdade pretendo é estimular o saudável debate
crítico em torno dessa obra e não fechá-lo ou congelá-lo em um rótulo.
Esse
romance de Machado de Assis, como sabem todos, não tem um fulcro definido, mas desenvolve-se
por meio de ampla dispersão de assuntos, sem que um se sobreponha ao outro: as
memórias pendem ora para a revelação das intenções do narrador, entre elas a
invenção do emplasto, ora para o desfile de sua empáfia, com destaque para as conquistas
e os namoros que preencheram seus dias de ocioso, pois era rico e o dinheiro
nunca foi para ele uma preocupação. Também se meteu a fazer reflexões em torno
da própria construção do livro enquanto descrevia suas andanças pela vida. Em
geral, minimizava tudo, em comentários rasos e mesmo irrelevantes, como quem
escreve apenas para encher papel. Justamente por não ter nada de tão significativo
assim a dizer. Às vezes deixava isso muito claro, tal como aparece em uma única
frase que é o próprio capítulo, o CXXXVI, acertadamente chamado “Inutilidade”:
“Mas, ou
muito me engano, ou acabo de escrever um capítulo inútil.”
E só. Tinha uma visão minimalista das pessoas
e das coisas que o cercavam. Por isso é que sempre colocava assuntos variados —
uns, banais, outros, pretensamente elevados — em um mesmo patamar de
importância, situação em que recorria ao processo sintático da coordenação,
justamente para mostrar que uma coisa não valia mais do que a outra (se é que
alguma coisa valia):
“Agora, quero
morrer tranquilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas
baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o
som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de
um correeiro.”
Morte,
lágrimas de mulheres, balbucios dos homens, de um lado, chuva tamborilando nas
folhas da planta, som de uma navalha sendo amolada, de outro: eventos
misturados, em tom baixo e pequeno e igualmente inexpressivo. Algo muito
parecido com o famoso “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de
réis”, fazendo juntar na mesma prateleira, também por meio da coordenação de
termos, o amor e o dinheiro. Isso denota uma falta de profundidade no
enfrentamento de temas caros à literatura, como o amor e a morte. Personagens desse
tipo, meio vazias e superficiais, não dão o que E. Forster (de Aspectos do Romance, Porto Alegre,
Editora Globo, 1974) chamou de
“personagens redondas”, aquelas que são capazes de surpreender convincentemente
à medida que se desenrola o enredo. Brás Cubas é uma “personagem plana”, por se
definir o mesmo, sem esconder nada, o tempo todo. Até suas oscilações de estilo
e dicção já são previstas, desde o prólogo, e cheiram a irresponsabilidade ou
falta de compromisso. Pois ele tem, conforme afirmou de si mesmo, um trapézio
no cérebro, balançando para lá e para cá, fazendo “cabriolas de volatim”. Tal
tom perfunctório lembra o matiz do humor dos modernistas, dos poetas que
exercitaram o chamado poema-piada; ou, independentemente dessa prática, daqueles
que imprimiram ao verso certo descaso ou indiferença em relação à vida, como o
atesta o conhecido “Perdi o bonde e a esperança”, de Carlos Drummond de
Andrade. Machado de Assis, com essa estratégia criativa, esteve mais de meio
século na frente de sua época.
A
morte, tema denso e um dos mais importantes da tradição do romance, diz ainda
Forster, aparece nas Memórias Póstumas ou
como uma grande brincadeira, sem profundidade alguma, capaz de fazer o narrador
comparar-se a Moisés, em prejuízo deste, ou, como se vê no último capítulo,
como uma entrega total da personagem à mesmice, sem vislumbrar saídas para a
mediocridade da vida cuja rotina aponta para o eterno insignificante e
repetitivo:
“Divino
emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da
riqueza, porque eras a genuína e direta inspiração do céu. O acaso determinou o
contrário; e aí vos ficais eternamente hipocondríacos.”
Não
estamos na presença do sentimento de crise moderno, que atormenta e atordoa,
mas diante da sensação de crise permanente, que não perturba nem angustia. Daí
o humor:
“Esta é a
grande vantagem da morte, que, se não deixa boca para rir, também não deixa
olhos para chorar...”
PASTICHE SIM, PARÓDIA NÃO
Brás
Cubas se serve do mesmo tom irônico e leve quando tem de fazer considerações sobre
a escrita do romance, pontuando páginas com um modo de enxergar a literatura
que o aproxima muito do narrador moderno:
“Começo a
arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer (...)
Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica;
vício grave, e aliás íntimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor.
Muito
se falou da modernidade desse romance: pela escrita que se autorreflete e ao
mesmo tempo reflete sobre os caminhos da chamada crise da literatura e da
própria capacidade de representação (“Começo a arrepender-me deste livro”),
citando textos e autores, num exercício claro de metalinguagem e
intertextualidade escancarada. Além disso, o que se espera de um autor moderno?
Que ele se coloque como um instaurador da novidade estética, parodiando os
estilos que se foram, numa atitude de altivo desdém — sentimento que, aliás,
não falta a Brás Cubas:
“Ao verme
que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança
estas memórias póstumas.”
Apesar do tom
cáustico e irreverente, próprio de quem parodia o exemplo do outro, Brás Cubas não parodia exatamente,
embora não se possa afirmar que ele não faça isso, na sua crítica ácida à
sociedade e à própria literatura. No entanto, no que diz respeito à crise do
romance e dos métodos da composição narrativa, ele não está no mesmo campo
discursivo de Flaubert ou de Dostoiévski nem no do próprio Machado de Esaú e Jacó ou de Dom Casmurro, pois nesses autores e romances ainda se conta uma
história com um fio narrativo que se pega e se acompanha sem dificuldades e
pelo qual se hierarquizam temas e assuntos. Hierarquias de ações e respeito às
convenções da escrita romanesca não existem em Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Assim, de que tradição faz parte esse livro? Tem-se de ver que esse texto
machadiano inova completamente a cultura romanesca brasileira. Não havendo para ele, até a época de
sua publicação, um parâmetro literário com o qual pudesse ombrear ou ao qual pudesse
se contrapor, ele, na falta de um paralelo, se contrapõe a si mesmo, pois o
morto que fala não deixa de acicatar sua própria falibilidade e indigência moral
e até os próprios recursos intelectuais para escrever. No mais, chega a
reverenciar suas dívidas literárias, mostrando que pasticha o estilo de Sterne,
por exemplo:
“Trata-se,
na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre
de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens
de pessimismo.”
“Obra
difusa”, como diz o próprio narrador. Até aí, sem maior fôlego interpretativo,
pode-se supor que as Memórias Póstumas de
Brás Cubas são paródicas em alta voltagem. Não vejo isso nessa obra; antes,
há uma confirmação de valores,
valores em vigência na época em que Machado escreveu mais os valores que só o
tempo futuro poderia trazer e testemunhar, numa espécie de antevisão. Esta
análise pode surpreender, mas só se tivermos do tempo histórico uma imagem de
linha reta, quando, ao contrário, confio em que muito do que se vive tem
lacunas, avanços, retrocessos e antecipações, em franca relação dialógica. Não foi
à toa que, sendo o Brasil naquela época ainda uma nação escravista e governada
por um rei de origem portuguesa, mas atenta às mudanças da civilização do mundo
europeu, tenham convivido aqui, no mesmo espaço urbano, o cortiço de feitio
colonial e a florescente economia capitalista e, depois de 1902, fossem abertas
na cidade do Rio de Janeiro ruas largas e vistosas pelo prefeito Francisco
Pereira Passos, que fez do cenário citadino carioca, sobretudo a Avenida
Central (desde 1912, Avenida Rio Branco), uma tentativa de réplica de Paris,
enquanto, desde o fim do século XIX, as primeiras favelas se instalavam nos
morros daquela cidade. Futuro e presente se conjugam nessa realidade social, e
o passado, surpreendentemente, também teima em ficar.
Esteticamente,
conviviam parnasianismo e simbolismo: um era o passado que voltava com força e
vigor, o outro seria, inconscientemente talvez, o desejo de viver o que nem sequer
existia por aqui — as condições ideológicas e econômicas trazidas pelo avanço
tecnológico em meio à contrastante descrença na ciência e no progresso material
(muito pelo contrário, no Brasil dessa época pontificava o Positivismo, com seu
lema de ordem e progresso). Parnasianismo e simbolismo se fizeram como emulação
do modelo europeu, sem dúvida. Principalmente, o exótico simbolismo, que, para
nós, brasileiros, era carente de verdade histórica. Não significou aqui um
grito contra o esvaziamento da atividade artística no duro diálogo com as leis
capitalistas de mercado que fizeram da poesia mais uma mercadoria. Não
estávamos ainda vivendo o dilema nem o auge desse processo, pois ainda havia
por aqui escravos e senhores do interior rural dando as ordens, no campo e na
cidade.
Há
algo mais difuso do que isso? A convivência do antigo e do moderno, sem autenticidade
e sem confiança na modernidade transplantada, pode nos ter dado, sim, um Brás
Cubas, de discurso difuso e aparentemente contraditório. E, nesse caso, se foi
assim, o defunto-autor só faz mesmo, em sua prática escritural, é confirmar — não parodiar — esse estado
de coisas. Por uma leitura formalista, até se poderia dizer que o romance é de
fato paródico; mas, por uma abordagem estético-sociológica, as Memórias Póstumas são uma obra de
confirmação.
Não
é, portanto, a paródia o forte desse romance, como podem pensar à primeira
vista. Brás respeita os mestres que lhe deram sugestões formais, o que o leva
estilisticamente ao pastiche. Apenas, para desvio da atenção do leitor, o
discurso que se tece nesse romance simula ser flagrantemente desigual e
contraditório — mas, repito, ele é intrínseca
e internamente desigual e contraditório nele mesmo, em sua própria agenda
—, não em relação a um Flaubert ou a um Tolstoi. Falta a Brás Cubas ter a quem
parodiar no próprio sistema que habita, não sendo, pois, parâmetro para nenhum
autor semelhante de quem possa discordar.
TUDO JUNTO E MISTURADO
Muito
do que os modernos fizeram e que Machado de Assis soube tão bem elaborar e
aplicar a seus romances, num Brasil ainda muito acanhado literariamente, é
sinal de que o país, ainda que ofuscado pela ambição de parecer-se com os
grandes centros avançados europeus, refletia a miragem do colonizado diante do
portento do seu colonizador. A modernidade sul-americana é assim, como analisa
Néstor Canclini em Culturas Híbridas (São
Paulo, Edusp, 2006): nosso avanço tecnológico, então frágil e incipiente, não
conseguia corresponder a contento ao avanço das ideias e das manifestações
culturais, entre elas a literatura. Fundem-se, é verdade, traços da cultura
local com os do estrangeiro que serve de espelho às vezes, mas isso não
acontece sem que as contradições de base não sejam reveladas. Por isso, falar
da separação entre alta e baixa literatura ou entre cultura urbana e cultura rural
tem sido cada vez mais difícil e problemático, e não é fácil desde o caso das Memórias Póstumas, onde convivem muito
bem tanto o tom literário mais conservador, elitista, quanto a dicção
popularesca. Ou seja: nem chegamos a ser suficientemente modernos, somos de
algum modo pós-modernos, mas tudo, em filosofia e em arte, parece estar
inconcluso e mesclado dos mais diferentes tons.
De
um legado estético do passado, posso pinçar um exemplo que não me deixa mentir.
A busca de um discurso elevado, próximo do discurso culto e clássico — haja
vista o exemplo que coloco abaixo, parecendo ter saído de um solene verso de
Góngora, com suas gradações descendentes (“En tierra, en humo, en polvo, en
sombra, en nada”) —,
“A vida
estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a
consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma.” (grifo
meu)
termina por cruzar-se, sem que o narrador faça
a devida transição, com a oralidade brasileira mais típica:
“Jumento de
uma figa, cortaste-me o fio às reflexões.”
No
primeiro caso, Brás Cubas fala incorporando
o discurso barroco, como se isso fosse dele e do tempo dele, em verdadeiro
sincretismo estilístico. E o faz dentro da ótica do pastiche, não do da paródia.
Pois não zomba do modelo que usa. No segundo, a oralidade matuta que vem dos
sertões e do centro do país contamina o discurso pretensamente erudito e
encaixa-se naturalmente no texto. A tudo isso somem-se os ingredientes dos
costumes brasileiros, quase beirando a preguiça macunaímica, a ponto de ficar
irreconhecível o nosso homem letrado que tem o europeu como matriz do
pensamento:
“Tinha eu
conquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião; era um acadêmico estroina,
superficial, tumultuário e petulante (...) No dia em que a Universidade me
atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no
cérebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso.”
Essas incorporações
estilísticas, não se fixando em nada propriamente dito, mostram que não há um
norte a considerar, uma ideia diretriz, mas parece que o discurso e o mundo se
movem em constante — mas certamente imperceptível —mutação. Imperceptível,
porque o narrador se apressa em dizer
que “o livro anda devagar”. Mas anda! E move montanhas! Os tempos históricos e
estéticos não dialogam entre si como fontes de preparação e de transição de um
para o outro, nem o narrador se dá esse trabalho. A hibridez do estilo é vista
naturalmente, como se Machado de Assis tivesse podido antever a velocidade do
tempo que vivemos contemporaneamente, sem recuar, porém, do tempo em que viveu.
Assim, da matriz barroca à Góngora pula-se para a matriz parnasiana à Raimundo
Correia,
“Aí vinham a
cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a
pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza,
o amor (...)”
ou para a moderna, em que se proclamam alto
e bom som a fragmentariedade e a dissolução das partes (nascimento, meninice,
juventude) que organicamente poderiam estar relacionadas e não estão, pois tudo
se borra na e pela linguagem, sem junturas e conexões, como se vê neste “discurso
do método”:
“Vejam: o
meu delírio começou em presença de Virgília; Virgília foi o meu grão-pecado da
juventude; não há juventude sem meninice; meninice supõe nascimento; e eis aqui
como chegamos nós, sem esforço, ao dia 20 de outubro de 1805, em que nasci.
Viram? Nenhuma juntura aparente (...) De
modo que o livro fica assim com todas as vantagens do método, sem a
rigidez do método.”
Da
mesma forma, passa-se do registro culto para o popular. A que matriz afinal
pertence Brás Cubas? Possivelmente, a uma matriz que neutralize as
possibilidades de oposição e favoreça as de convivência da multiplicidade, já
que uma direção única e soberana, com direito a pano de fundo, parece ter sido
exaurida. Fica, então, a impressão de que tudo muda continuamente, sendo
sintoma disso a aversão a uma ideia fixa. Por quê? Porque a estabilidade não tem
mais lugar em um mundo que começa a ser governado pela lógica do capital
(Machado sentia isso? eis a hipótese). Por isso é que, também, não faz mais
sentido estabilizar-se numa constante estilística. Primeiro, quis vender a grife
que é o seu nome; depois que o projeto se mostrou inviável, sem justificativa
explícita para isso, ele aparece, no fim do livro, exprimindo-se em linguagem notadamente
econômica, dizendo que, apesar das venturas e desventuras vividas, “não houve míngua nem sobra” e ainda saiu “quite
com a vida” e chegou ao “outro lado do mistério com um pequeno saldo”, o de não ter casado nem tido
filhos, fato que, mal administrado (e o seria, sem dúvida), poderia significar
ruína ainda maior. Desperdício é coisa a evitar. Pensando assim, as inúmeras
digressões parecem inúteis e exorbitantes, mas não são, porque, no regime da
economia do livro, elas configuram e desenham esse traço pós-moderno segundo o
qual a metarreflexão é mais importante do que a realidade que se pretende
representar.
BRÁS CUBAS NO REALITY SHOW
Temos,
assim, um narrador às vezes cínico e às vezes solene, que diz abertamente o que
pensa e como agiu durante a vida toda, do nascimento à morte, passando pelas inúmeras
aventuras amorosas, sem maiores riscos e consequências, mesmo quando namorou
uma mulher de um figurão. Sua regra de conduta narratorial é falar o que vem à
cabeça, sem planejar, parecendo que as memórias são retalhos de lembranças
esparsas — e, no entanto, sabemos, há um método romanesco aí embutido para simular
incoerência e aleatoriedade —, e sem privilegiar este ou aquele assunto, que
tanto pode ser um encontro secreto com Virgília, na casinha administrada por
dona Plácida, quanto um breve comentário sobre o que teria dito a rainha de
Navarra acerca da iminência de descobrirem mais cedo ou mais tarde um amor
proibido. Em um caso, a narração de um encontro entre amantes pode interessar à
história que Brás conta; mas uma reflexão à toa, tirada de uma longínqua
rainha, em nada serve a essa mesma história, a ponto de ele mesmo afirmar que
tal capítulo, por ser totalmente dispensável, “não é sério”.
O
narrador das Memórias Póstumas, como
se vê, parece até que bebe; aliás, ele insinua tal metáfora no capítulo LXXI
intitulado “O Senão do Livro”, comparando seu estilo com o andar torto dos
bêbedos numa invectiva contra o ato narrativo que constrói e, de quebra, contra
o próprio leitor:
“Tu tens
pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e
nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os
ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram,
gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...”
Esta
é a criatura que não se envergonha de confessar suas fraquezas, seja como
homem, seja como narrador. Mostra tudo, não esconde nada, como ele mesmo diz no
capítulo CXI, “O Muro”:
“Não sendo
meu costume dissimular ou esconder nada, contarei nesta página o caso do muro.”
Todos,
então, podem saber de tudo, nada fica oculto ou disfarçado nas malhas do
discurso, que se oferece ao leitor sem artimanhas nem simbolismos, sem
metáforas ousadas, como aquela outra, a dos “olhos de ressaca”, que se vê em Dom Casmurro, objeto enigmático de tanta
especulação. Mal comparando, o
romance é exposição pura, como se narrador e outras personagens estivessem em
um reality show vigiado por câmeras
de televisão. Brás Cubas parece um homem de hoje, da chamada sociedade de
consumo, “sociedade pós-industrial”, no dizer de Fredric Jameson, em Pós-Modernismo: a Lógica Cultural do
Capitalismo Tardio (São Paulo, Ática, 1997). Ele quer é aparecer diante de
uma câmera e, por meio dela, atingir um público incomensurável, apesar de ter
esnobado, no prólogo ao livro, as “duas colunas máximas de opinião”, os
frívolos e os graves. Puro charme! O que ele deseja mesmo é ver seu nome
divulgado. Isso vale mais do que dinheiro, porque Brás Cubas é uma grife acima
de tudo. Uma sociedade pós-industrial já é pós-moderna, se se tomar o termo dentro
de um critério histórico-econômico bem definido, segundo uma concepção linear
de história. A sociedade brasileira daquela época, que nem tinha ainda passado
pelo fenômeno da industrialização moderna, adotava valores europeus para cá mal
transplantados, sem que a nossa base infraestrutural acanhada o permitisse ou
suportasse, e, assim mesmo (ou por isso mesmo), conseguiu produzir uma poesia
como a simbolista, alienada e deslocada do nosso contexto histórico. Então, se
assim é e a história já o comprovou, por que não seria possível um Brás Cubas
pós-moderno?
Nesse
quadro interpretativo avulta um Brás Cubas que se mostrou obcecado pela ideia
de fama e exibição pública de sua imagem. Morto, confessou a verdadeira
motivação daquilo que seria o seu invento, o emplasto Brás Cubas. É o que se lê
no capítulo II (“O Emplasto”) do livro que — imaginem! — oficializa o realismo
entre nós:
“Essa ideia
era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto
anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. (...)
Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que
influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores,
folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo?
Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas.”
Se
o leitor percebe bem (ou se me faço mesmo entender), estou pondo em discussão a
ideia, bastante ventilada, de que o processo narrativo das memórias de Brás
Cubas tem sólida configuração moderna e ponto final. Seguindo os passos de
alguns críticos, como João Alexandre Barbosa, que, no ensaio “A Modernidade do
Romance” (em A Leitura do Intervalo,
da editora paulistana Iluminuras, de 1990), teve até certo pejo em classificar
esse livro como romance, propondo um
rótulo, “escritura ficcionalizada”, que, se nada acrescenta do ponto de vista
teórico-metodológico à avaliação desse livro de Machado (o que quer dizer
escritura ficcionalizada? os textos literários, em geral, não o são?), ao menos
serve para mostrar que, no meio dos realistas de plantão, o autor de Dom Casmurro se destaca e revela, por
artes do ofício, a sua independência.
Mas
não pretendo parar por aí. Aproveitando palavras de João Alexandre, concordo —
em parte — com que o romance seja visto e analisado como moderno, por que não? Vendo
o romance no confronto com outras obras do mesmo período, comparando-se
sistemas (o sistema dos realistas europeus da época, de um lado, e o sistema
mais do que moderno, do outro, por sinal, este praticamente inexistente àquela
altura), Memórias Póstumas de Brás Cubas
apresenta uma superação do estilo vigente, o realismo, assim como ilumina as
características fundamentais do espírito renovador do romance, desde o fim do
século XIX, segundo palavras de João Alexandre: “ruptura com relação ao modelo
literário oitocentista”, “problematização de valores literários no amplo
movimento das ideias pós-românticas”, “desarticulação percebida no nível de
construção do texto”, “meditação acerca de suas próprias virtualidades”. Sim, Memórias Póstumas de Brás Cubas tem tudo
isso. Mas acho demais, ou precipitado, afirmar, como o fez Barbosa para
enquadrar bem esse romance na nossa nascente (e precária) modernidade, que,
nele, há um sentimento de “desconfiança em relação ao ajuste entre
representação e realidade”. Isso ocorreria de fato, mas desde que o narrador
fosse um homem do mundo dos vivos e vivesse exclusivamente nessa órbita. E se
espantasse com as coisas que ele experiencia. Nem uma coisa nem outra. Nem a
morte é, para ele, um espanto. A morte é o lugar de onde ele mira o passado,
confundindo-o com o presente, tecendo o futuro, sem pressa, com pachorra. É o
lugar de produção dos textos, sua central de produção, por onde ele visualiza
os recursos próprios de quem está produzindo
a realidade que deve ser passada na tela da televisão:
“(...)
expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um
pouco da eternidade.”
BRÁS JORNALISTA
Por
conseguinte, Brás Cubas não é da ordem daquele outro realismo, nem se pode compará-lo
a este. Ao fazer do narrador um “defunto-autor”, Machado já nos avisa que ele,
embora em certo sentido desarticule representação e realidade — pois não é nada
convencional esse modo de narrar, ao menos para aquele momento —, instaura um
nível de realidade todo próprio e particular. E, por isso, esquece (melhor do que dizer que parodia) o modelo do romance que
se praticava até então, o romance realista tradicional. Precisaria que outro
escritor, baseado nesse novo modo de relacionar discurso e realidade (o modelo
de Brás Cubas), escrevesse uma obra que revelasse tal desconfiança em relação a
esse insólito modo composicional, desarticulando-o, numa evocação metalinguística
de Brás Cubas. Este, na verdade, não desconfia da validade do modo narrativo de
Flaubert ou de Aluísio Azevedo, simplesmente porque os ignora. Para Brás, vale
o que ele disse no prólogo: o romance tem “umas aparências de puro romance” e,
de fato, não é o “romance usual”. Inaugura-se, pois, no meu Brasil brasileiro,
uma nova maneira de encarar a arte do romance, tornando-o único naquele momento.
Vamos,
então, às diferenças! Brás Cubas, a confiar em tudo que eu disse até agora, é
extremamente sincero, o que lhe foi possibilitado pela morte. Se tivesse
escrito enquanto vivia, não teria escrito esse livro, com essa aparência. A
sinceridade atinge a tudo: suas análises sobre relações com as pessoas e
particularmente com as mulheres, sua visão (de defunto, é claro) sobre a vida, a
hipocrisia e a escrita do romance. Não esconde o jogo; revela-o o tempo todo. Escreve
não como quem escreve romance (pelo menos aquele tipo de romance conhecido),
mas como se fosse um jornalista.
Sim
senhor, um autor metido a jornalista! Como um cronista, ou um historiador
apequenado, Brás Cubas escreve capítulos como “Genealogia”, à moda dos
cronicões portugueses medievais, em que se levanta a linhagem das famílias nobres
(no caso, a dele), ou capítulos como “Notas”, em que deixa impressões pessoais
após a morte do pai e em cujo final diz o seguinte, como o diria um jornalista:
“Isto que parece um simples inventário eram notas que eu havia tomado para um
capítulo triste e vulgar que não escrevo”. Já no capítulo XXII, “Volta ao Rio”,
depois de sua estada em Portugal, onde se formou em direito, reflete como um
jornalista, não como um romancista, sobre a escrita de um capítulo de romance:
“Vim... Mas
não; não alonguemos este capítulo. Às vezes, esqueço-me a escrever, e a pena
vai comendo papel, com grave prejuízo meu, que sou autor. Capítulos compridos
quadram melhor a leitores pesadões; e nós não somos um público in-folio, mas in-12, pouco texto, larga margem, tipo elegante, corte dourado e
vinhetas... principalmente vinhetas... Não, não alonguemos o capítulo.”
Brás
Cubas, como um provável técnico da arte da imprensa, parece dar orientação
sobre tipo de papel, gramatura, formato de folhas, vinhetas, tudo que for necessário
a um relato que se publica em jornal, aproveitando-se Machado, quem sabe, de
conhecimentos técnicos obtidos de sua experiência na tipografia de Paula Brito
quando era ainda adolescente. Da mesma forma, como um jornalista que é, pretende
escrever como se o espaço da página fosse de tal forma reduzido que o obrigasse
a economizar palavras (“Não, não alonguemos o capítulo”). Escrever muito poderia
significar esbanjamento à toa, desperdício que se pode encontrar em romances
pesadões, principalmente os realistas e naturalistas, repletos de informações,
descrições, detalhes sobre a vida das personagens — mas não em um jornal (“Às
vezes, esqueço-me a escrever, e a pena vai comendo papel, com grave prejuízo
meu, que sou autor”). Brás Cubas, como dirá no capítulo XLV, “Notas”, prefere
as notas ao capítulo, a brevidade à prolixidade. Usa novamente a linguagem de
jornalista e de tipógrafo no capítulo XXXVIII, “A Quarta Edição”, em que dá a
entender que a vida de um homem se reconcilia com as vidas anteriores,
ampliando-as, aperfeiçoando-as. A vida, como o texto, pode ser revista,
ampliada e melhorada.
Como
bom jornalista, tem de ser mais sincero e menos dramático. Por isso é que,
depois de separar-se de Virgília, Brás disse, no capítulo CXV, “O Almoço”, que
não a viu partir e que sentiu uma mistura proporcionada de alívio e saudade. Ao
contrário do que esperam dele, especialmente naquele dia, não lamentou o fato da
separação e até almoçou muito bem: “Comia-se com a boca, com os olhos, com o
nariz”. Se tivesse perdido o apetite e chorado, “seria romanesco; mas não seria
biográfico”, completa ele. Vitória do jornalista, ruína do romancista. Não por
acaso, ele, anos mais tarde, na sua maturidade, funda um jornal oposicionista
ao governo, o que lhe causou um dissabor doméstico: a ruptura com o cunhado, o
Cotrim.
Há,
praticamente em todas as páginas desse romance, uma linguagem de brevidade e
parcimônia que não combina com os romances escritos no século XIX, nem aqui,
nem alhures. É linguagem de jornalista, de revisor de si mesmo e de homem que
contempla as exigências do mercado. Certamente,
de todos os romances de Machado de Assis Memórias
Póstumas de Brás Cubas é o menos comercial, o que causa ainda arrepio nos
leitores adolescentes, que têm certa dificuldade em acompanhar o fio lógico da
narrativa em geral entremeada de considerações sobre o processo de escrita do
próprio romance. Mas, em compensação, é o mais jornalístico: capítulos breves, anotações
necessárias e fuga do ornamental e do detalhe. Tem ar de crônica. Maior
transparência daquilo que se quer dizer também. Isso é um princípio
contemporâneo, pós-moderno, pois não há pretensão a grandes painéis ou a
análises densas e herméticas. Lá se foi a modernidade desse texto que João
Alexandre Barbosa, em sua perplexidade de crítico, classificou de “escritura
ficcionalizada”, para não dizer nada que já não soubéssemos a respeito do
livro. Tento ver também, ao lado do moderno, o que há de pós-moderno nas Memórias Póstumas, mas um pós-moderno
que é um jeito, uma atitude, não um estilo, “um modo de operar”, como teoriza
Umberto Eco em seu Pós-Escrito a O Nome
da Rosa, livreto de 1984. Aliás, moderno também não é um estilo (estilo é o
modernismo), se é que me entendem.
Diz
Eco, numa visão meta-histórica do problema conceitual: “Podemos dizer que cada
época tem seu próprio pós-moderno”. É o reconhecimento de que não se pode ir
mais além das rupturas já realizadas pelos modernos, fazendo-se quase a mesma
coisa que estes: fragmentação do discurso, intertextualidade declarada,
metalinguagem romanesca. Só resta mesmo é revisitar o moderno, respeitá-lo, não
destruí-lo. Ou, já em outro campo teórico, como diz Canclini, a pós-modernidade
tem de ser entendida, no caso bem especial dos latino-americanos, “não como uma
etapa ou tendência que substituiria o mundo moderno, mas como uma maneira de
problematizar os vínculos equívocos que ele armou com as tradições que quis
excluir ou superar para constituir-se”. Assim também Brás Cubas, no capítulo XX
(“Bacharelo-me”), lançou os olhos para o futuro mas teve de reter o olhar no
passado, indo “ao longe, no horizonte misterioso e vago”, num movimento em que
“uma ideia expelia a outra”, desejoso, como ele mesmo diz ao fim do capítulo,
“de prolongar a Universidade pela vida adiante...”, nas suas idas e vindas. O defunto-autor, sem sentimentos
destrutivos, sem utopias nem garantias das projeções que lança, fez da vida da
personagem-título um filme ou um espetáculo morno a que ele, dobrando-se em
dois, o morto e o vivo, assiste da plateia — do mesmo modo como o faria um
repórter, observando os fatos que registra e comenta.
*
Roberto Sarmento Lima é doutor em
Letras e professor da Universidade Federal de Alagoas (sarmentorob@uol.com.br)
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