“...
a prosa machadiana, (...) continua viva e presente, e presente e viva
permanecerá ainda por muito tempo, porque a mentira de sua arte é daquelas que
conseguem revelar muito da verdade de nossa complicada condição humana.” (Domício
Proença Filho, ‘Os Melhores Contos de Machado de Assis, Global Editora, 1986,
São Paulo e Rio de Janeiro, p. 16)
O CONTO
À semelhança de a ‘Peregrinação’,
de Fernão Mendes Pinto, obra que lhe serviu de mote, esse conto ‘O
Segredo do Bonzo’ narra as aventuras de dois viajantes, o narrador e
Diogo Meireles, na cidade Fuchéu, metrópole do reino de Bungo. Além de outros
Diogos, na ‘Peregrinação’ havia um
Diogo Zeimoto, português que, em terras nipônicas, passou por experiência
semelhante à de Diogo Álvares Correia, o nosso Caramuru, assim conhecido,
segundo verdadeira lenda, por ter disparado tiro de mosquete para o ar e
assustado muito os indígenas brasileiros, que nunca tinham visto tal artefato e
por isso o chamaram de Caramuru, moreia, expressão depois romantizada por Santa
Rita Durão com o significado de “Homem do Trovão”, no seu ‘Uraguai’. Esse Diogo Zeimoto
esteve em Fuchéu com Fernão Mendes Pinto.
Bonzo é um sacerdote budista, mas essa palavra
também se aplica às pessoas impassíveis, insensíveis, aquelas cientes de que
praticam um ato não totalmente dentro da ética mas em nada se abalam com isso.
Como se trata de um conto machadiano, as duas possibilidades apresentam-se ao
leitor com o mesmo peso.
Aliás, uma das personagens, o bonzo criador da teoria que
justifica as ações das demais personagens, expressa isso com muita clareza:
“...
e depois de reconhecer que a entendíamos, incitou-nos a praticá-la, a
divulgá-la cautelosamente, não porque houvesse nada contrário às leis divinas
ou humanas, mas porque a má compreensão dela podia daná-la e perdê-la em seus
primeiros passos;...” (p. 325, obras completas, vol. II)
Como sempre faço aqui, procuro não detalhar muito o
enredo da história, para que o leitor se sinta curioso e vá lê-la na íntegra,
na fonte. Os acontecimentos narrados no conto ocorrem na cidade Fuchéu (vou
manter assim, como Machado de Assis escreveu no conto, e não cidade de Fuchéu)
e se desenvolvem a partir de seis crenças impingidas à população da cidade, as
quais se transformaram em verdadeiros mitos e dogmas. Dogmas, diga-se e
reforçando, realmente inquestionáveis.
AS
EXPERIÊNCIAS
Um bonzo, de nome Pomada, mais esperto e mais experiente
(já tinha vivido 108 anos) que os outros bonzos da cidade Fuchéu, depois de
muito meditar, refletir, pesquisar, exaurir suas forças nessa busca, fez uma
grande descoberta:
“Considerei
o caso, e entendi que, se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na
realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que
das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da
realidade, que é apenas conveniente” (p.
325, idem)
Essa doutrina nasceu,
explica o bonzo, da crença de que existia uma pedra da lua com quilates tais
que, colocada “no cabeço de uma montanha ou no píncaro de uma torre” iluminaria
uma província inteira, por mais dilatada que fosse. Tal pedra nunca existiu,
mas muitos juravam que existia e outros diziam que a viram com seus próprios
olhos. Vale, pois, a opinião e não o fato.
Essa foi, digamos, a primeira experiência. A segunda já
foi perpetrada por um seguidor de Pomada, Patimau, que fez o povo acreditar que
os grilos “procediam do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova”.
Languru, outro adepto da filosofia de Pomada, também convenceu o povo de Fuchéu
de que a terra seria inteiramente destruída e a vida futura estaria numa gota
de sangue de vaca, o que justificaria “o ardor com que esse distinto animal era
procurado por muitos homens à hora de morrer;...”.
Tanto Patimau quanto Languru eram idolatrados em Fuchéu,
como filósofos, físicos e doutores, conhecedores de algo superior, não
acessível ao vulgo. Suas doutrinas eram inquestionáveis pelos fucheuenses.
Admirados com essa crença inabalável da população em algo
incrível e ilógico, o narrador e Diogo Meireles vão se inteirar da doutrina de
Pomada. Ouvem-na, assimilam-na e aplicam-na, juntamente com um amigo de Diogo,
um tal Titané, alparqueiro em Fuchéu.
Esse Titané convence a população da inigualável e milagrosa
excelência de suas alparcas (alpercatas, ou mais simplesmente sandálias presas
aos pés por tiras de couro ou pano), usadas por nobres, príncipes, reis,
monges, etc. O povo crê nessa história e a venda delas ganha foros
astronômicos.
O narrador, dono da mais modesta experiência, usando
também o recurso dos ademanes, convenceu a população de sua excelência como
músico, reconhecido e aplaudido como tal. De fato, o que não interessava, já
que não é o fato que importa mas a versão dele, ele chegava a ser razoável,
senão medíocre, como músico.
E finalmente a absurda e convincente experiência
engendrada por Diogo Meireles, médico. Grassava em Fuchéu uma epidemia horrenda
que dilatava e volumava absurdamente o nariz do doente. Todos os médicos
tentaram convencer os acometidos dessa tragédia a se desnarigar, acabando com o
incômodo e o peso, mas os doentes preferiam o excesso à ausência.
Numa conferência não contestada pelos sábios locais, ao
contrário, por eles confirmada, pois tinham medo de demonstrar que desconheciam
o que era exposto, Diogo Meireles disse que existia um nariz metafísico que
substituiria com muita vantagem o narigão físico e doente. Ninguém via,
afirmava o físico (na época, um médico era um físico) enfaticamente, mas o
nariz metafísico lá estava. Convencidos, os doentes se deixaram desnarigar,
aceitavam o nariz metafísico e alguns chegavam a assoar esse nada que traziam
no rosto. Se pudéssemos ousar, diríamos que esse nariz metafísico é o mesmo
nariz de palhaço que caracteriza quem acredita em qualquer coisa, aliás é o
nariz que a maioria dos políticos afixa em nossa cara.
RETOMADAS
TEMÁTICAS
Tenho mostrado nesses ensaios que Machado de Assis repete
temas e, magistralmente, consegue criar novas histórias. Nesse ‘O Segredo do Bonzo’, sentimos a velha
ironia contra o cientificismo exacerbado de sua época. A fala final de Patimau,
que convenceu o povo que o grilo provém do ar com as folhas de coqueiro na
junção da lua nova, foi:
“...
e, se por ter aventado tão sublime verdade, fosse necessário aceitar a morte,
ele a aceitaria ali mesmo, tão certo era que a ciência valia mais do que a vida
e seus deleites”. (p. 323)
Outro tema explorado nesse conto é o da relatividade
entre a verdade e a mentira. Afinal o que é verdade, o que é mentira? Aqui a
mentira se impõe como força indiscutível, uma verdade inquestionável por
aqueles que na mentira acreditam. Não é o que ocorre, por exemplo, em ‘Noite de Almirante’, cujo engodo nasce
de um lampejo provocado pela vergonha de Deolindo Venta Grande não ter concretizado
seu encontro por meses esperado. Para não confessar o próprio fracasso, o
recruta diz ter tido uma noite de almirante com sua amada. Foi uma farsa com
sorriso amarelo!
Também, de certa forma, reaparece a velha exploração do
homem pelo homem, quando “verdades sociais”, criadas por homens, são impostas
ao indivíduo, que as aceita como que capitulando à sua força. Ou também a
tremenda força da opinião do outro, o ser social, que se torna uma segunda
alma, como no conto ‘O Espelho”. Essas
“verdades sociais” são verdadeiros dogmas, e como tais independentes de
comprovação. Acredita-se e pronto. Eles estabelecem e moldam comportamentos
individuais dentro da sociedade.
A
PRINCIPAL INTERTEXTUALIDADE
Portanto, além da autointertextualidade mostrada acima
com as retomadas de temas, ‘O Segredo do
Bonzo’ dialoga com a ‘Peregrinação’,
obra de Fernão Mendes Pinto, publicada em 1614, e que suscitou muita polêmica
sobre se todo o narrado estava correto, quer geograficamente, quer historicamente
e até cronologicamente. Possivelmente escrita de memória, de 1570 a 1578, e com
várias observações do autor, uma espécie de crônica autobiográfica de suas
viagens e aventuras pelo Oriente, a obra, como se viu, só foi publicada muitos
anos depois de escrita. Narra os acontecimentos da peregrinação do autor pelo
Oriente, de 1531 a 1556. Acredita-se que algumas observações que o autor anotou
nos originais não foram aproveitadas na composição final.
Foi a brecha para Machado de Assis criar essa história do
bonzo como um “Capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto”. E remete, já no início
do conto, ficticiamente, seu leitor à ‘Peregrinação’,
afirmando que “Atrás deixei narrado o que se passou nesta cidade Fuchéu,
metrópole do reino de Bungo,...”. Bungo e Fuchéu realmente fazem parte das
aventuras de Fernão Mendes Pinto.
CURIOSIDADES
DE LEITOR
Machado de Assis, como qualquer outro bom autor, vai
jogando detalhes com aparência de insignificantes, mas que são dicas que justificam
futuros acontecimentos da história. É o que ocorre com o detalhe que o autor passa
entre parênteses na seguinte passagem:
“Diogo
Meireles, que melhor conhecia a língua da terra, pois ali estivera muitos
meses, quando andou com bandeira de veniaga (agora ocupava-se no exercício da
medicina, que estudara convenientemente, e em que era exímio) ia-me repetindo
pelo nosso idioma...” (p. 323)
Ou seja, Diogo Meireles estivera na região comerciando
(não se sabe se trapaceando ou não), mas depois o autor já nos alerta da nova
especialidade dele, a dedicação profunda à medicina, e é por ser exímio nela
que desnarigou os doentes de Fuchéu.
Outro ponto curioso é que uma das seis experiências foi
perpetrada pelo narrador, que teve de convencer os moradores de Fuchéu de sua
insuperável arte de músico. Como será que o narrador fez seu discurso, já que
ele não falava a língua de Bungo. Será que foi só usando ademanes? De qualquer
forma, é questão de imaginar: é possível que Diogo Meireles o tenha ajudado.
Talvez seja por isso que o narrador poucos detalhes tenha passado de sua
própria experiência, preferindo destacar as dos dois outros colegas.
ANOTAÇÕES
GRAMATICAIS
Os textos machadianos oferecem toda gama de empregos
gramaticais e alguns de forma inusitada. Neste ensaio, pela primeira vez,
apresentarei alguns casos gramaticais curiosos. Assim:
a)
tanto
que
= logo que – diferente e inusitado
emprego da palavra ‘tanto’ como o
primeiro elemento de uma locução conjuntiva subordinativa temporal. Esse
operador argumentativo aparece na frase “A multidão, tanto que ele acabou, levantou um tumulto de aclamações, que esteve
a ponto de...” (p. 323). Ou seja, “logo
que ele acabou,...”
b)
‘cujo
filho era’ – já no tempo de Machado de Assis esse
pronome, que indica posse, não era usado com o sentido que aparece em “...mas
enfim, estava feito, e todo redundava em glória do reino de Bungo, e
especialmente da cidade Fuchéu, cujo
filho era;...” (p. 323). Ou seja, seria modernamente “... especialmente da
cidade Fuchéu, da qual era filho”. Até meados do século XIX, ainda se usava esse
pronome da forma que Machado de Assis empregou, exatamente porque a história
criada ocorre no ano 1552. É uso semelhante a um exemplo que recolho da
‘Grammatica Philosophica da Lingua
Portugueza’, de 1866, de Jeronymo Soares Barbosa: “Restituir a coisa a cuja é”. Isto é, ao dono dela.
Também
era usado como pronome interrogativo, conforme nos mostra Said Ali, na sua
‘Gramática Histórica’, Ed. Melhoramentos, 3ª edição, 1964, página 111: “Cuja he esta barca que preste?” (Gil
Vicente).
c) “em que” = durante os quais – há uma frase curiosa, “E, feitos os
cumprimentos, em que o alparqueiro chamou as mais galantes coisas a
Diogo Meireles, tais como – ouro da verdade e sol do pensamento,...” (p.
324), na qual o autor usou o pronome relativo ‘que’ precedido da
preposição ‘em’, mostrando que os elogios estavam num lugar (no
discurso de cumprimento) e não durante os cumprimentos. Mas essa
segunda forma também ficaria bem, ou seja, “E, feitos os cumprimentos,
durante os quais...”, o que mostraria que os elogios foram proferidos
durante os cumprimentos. As duas seriam possíveis, mas a de
Machado é sempre a melhor.
cumprimentos, em que o alparqueiro chamou as mais galantes coisas a
Diogo Meireles, tais como – ouro da verdade e sol do pensamento,...” (p.
324), na qual o autor usou o pronome relativo ‘que’ precedido da
preposição ‘em’, mostrando que os elogios estavam num lugar (no
discurso de cumprimento) e não durante os cumprimentos. Mas essa
segunda forma também ficaria bem, ou seja, “E, feitos os cumprimentos,
durante os quais...”, o que mostraria que os elogios foram proferidos
durante os cumprimentos. As duas seriam possíveis, mas a de
Machado é sempre a melhor.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Há muitos outros casos de gramática e outros enfoques que
poderiam e podem ser abordados, mas para o intuito deste artigo, creio já ser o
suficiente. Minha ideia é despertar cada vez mais interesse pela leitura real
dos contos machadianos, combatendo assim a ‘leitura do ouvir falar’, com a qual
muito tenho me deparado vida afora.
Afinal, “a mentira
de sua arte é daquelas que conseguem revelar muito da verdade de nossa
complicada condição humana”, e essa mentira artística está em muitas e
muitas das histórias criadas por esse gênero, mesmo algumas daquelas que foram
compostas ao correr da pena, para preencher espaço nas folhas diárias da sua
época.
*Prof. Leo Ricino
Mestre em Comunicação e
Letras – professor na Fecap – Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado;
instrutor na Universidade Corporativa Ernst & Young, São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário