sexta-feira, 21 de março de 2014

O SEGREDO DO BONZO


Por Leo Ricino*





         “... a prosa machadiana, (...) continua viva e presente, e presente e viva permanecerá ainda por muito tempo, porque a mentira de sua arte é daquelas que conseguem revelar muito da verdade de nossa complicada condição humana.” (Domício Proença Filho, ‘Os Melhores Contos de Machado de Assis, Global Editora, 1986, São Paulo e Rio de Janeiro, p. 16)


O CONTO

            À semelhança de a ‘Peregrinação’, de Fernão Mendes Pinto, obra que lhe serviu de mote, esse conto ‘O Segredo do Bonzo’ narra as aventuras de dois viajantes, o narrador e Diogo Meireles, na cidade Fuchéu, metrópole do reino de Bungo. Além de outros Diogos, na ‘Peregrinação’ havia um Diogo Zeimoto, português que, em terras nipônicas, passou por experiência semelhante à de Diogo Álvares Correia, o nosso Caramuru, assim conhecido, segundo verdadeira lenda, por ter disparado tiro de mosquete para o ar e assustado muito os indígenas brasileiros, que nunca tinham visto tal artefato e por isso o chamaram de Caramuru, moreia, expressão depois romantizada por Santa Rita Durão com o significado de “Homem do Trovão”, no seu ‘Uraguai’.  Esse Diogo Zeimoto esteve em Fuchéu com Fernão Mendes Pinto.
 Bonzo é um sacerdote budista, mas essa palavra também se aplica às pessoas impassíveis, insensíveis, aquelas cientes de que praticam um ato não totalmente dentro da ética mas em nada se abalam com isso. Como se trata de um conto machadiano, as duas possibilidades apresentam-se ao leitor com o mesmo peso.
            Aliás, uma das personagens, o bonzo criador da teoria que justifica as ações das demais personagens, expressa isso com muita clareza:
“... e depois de reconhecer que a entendíamos, incitou-nos a praticá-la, a divulgá-la cautelosamente, não porque houvesse nada contrário às leis divinas ou humanas, mas porque a má compreensão dela podia daná-la e perdê-la em seus primeiros passos;...” (p. 325, obras completas, vol. II)
            Como sempre faço aqui, procuro não detalhar muito o enredo da história, para que o leitor se sinta curioso e vá lê-la na íntegra, na fonte. Os acontecimentos narrados no conto ocorrem na cidade Fuchéu (vou manter assim, como Machado de Assis escreveu no conto, e não cidade de Fuchéu) e se desenvolvem a partir de seis crenças impingidas à população da cidade, as quais se transformaram em verdadeiros mitos e dogmas. Dogmas, diga-se e reforçando, realmente inquestionáveis.

AS EXPERIÊNCIAS
            Um bonzo, de nome Pomada, mais esperto e mais experiente (já tinha vivido 108 anos) que os outros bonzos da cidade Fuchéu, depois de muito meditar, refletir, pesquisar, exaurir suas forças nessa busca, fez uma grande descoberta:
“Considerei o caso, e entendi que, se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente” (p. 325, idem)
            Essa doutrina nasceu, explica o bonzo, da crença de que existia uma pedra da lua com quilates tais que, colocada “no cabeço de uma montanha ou no píncaro de uma torre” iluminaria uma província inteira, por mais dilatada que fosse. Tal pedra nunca existiu, mas muitos juravam que existia e outros diziam que a viram com seus próprios olhos. Vale, pois, a opinião e não o fato.
            Essa foi, digamos, a primeira experiência. A segunda já foi perpetrada por um seguidor de Pomada, Patimau, que fez o povo acreditar que os grilos “procediam do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova”. Languru, outro adepto da filosofia de Pomada, também convenceu o povo de Fuchéu de que a terra seria inteiramente destruída e a vida futura estaria numa gota de sangue de vaca, o que justificaria “o ardor com que esse distinto animal era procurado por muitos homens à hora de morrer;...”.
            Tanto Patimau quanto Languru eram idolatrados em Fuchéu, como filósofos, físicos e doutores, conhecedores de algo superior, não acessível ao vulgo. Suas doutrinas eram inquestionáveis pelos fucheuenses.
            Admirados com essa crença inabalável da população em algo incrível e ilógico, o narrador e Diogo Meireles vão se inteirar da doutrina de Pomada. Ouvem-na, assimilam-na e aplicam-na, juntamente com um amigo de Diogo, um tal Titané, alparqueiro em Fuchéu.
            Esse Titané convence a população da inigualável e milagrosa excelência de suas alparcas (alpercatas, ou mais simplesmente sandálias presas aos pés por tiras de couro ou pano), usadas por nobres, príncipes, reis, monges, etc. O povo crê nessa história e a venda delas ganha foros astronômicos.
            O narrador, dono da mais modesta experiência, usando também o recurso dos ademanes, convenceu a população de sua excelência como músico, reconhecido e aplaudido como tal. De fato, o que não interessava, já que não é o fato que importa mas a versão dele, ele chegava a ser razoável, senão medíocre, como músico.
            E finalmente a absurda e convincente experiência engendrada por Diogo Meireles, médico. Grassava em Fuchéu uma epidemia horrenda que dilatava e volumava absurdamente o nariz do doente. Todos os médicos tentaram convencer os acometidos dessa tragédia a se desnarigar, acabando com o incômodo e o peso, mas os doentes preferiam o excesso à ausência.
            Numa conferência não contestada pelos sábios locais, ao contrário, por eles confirmada, pois tinham medo de demonstrar que desconheciam o que era exposto, Diogo Meireles disse que existia um nariz metafísico que substituiria com muita vantagem o narigão físico e doente. Ninguém via, afirmava o físico (na época, um médico era um físico) enfaticamente, mas o nariz metafísico lá estava. Convencidos, os doentes se deixaram desnarigar, aceitavam o nariz metafísico e alguns chegavam a assoar esse nada que traziam no rosto. Se pudéssemos ousar, diríamos que esse nariz metafísico é o mesmo nariz de palhaço que caracteriza quem acredita em qualquer coisa, aliás é o nariz que a maioria dos políticos afixa em nossa cara.
RETOMADAS TEMÁTICAS
            Tenho mostrado nesses ensaios que Machado de Assis repete temas e, magistralmente, consegue criar novas histórias. Nesse ‘O Segredo do Bonzo’, sentimos a velha ironia contra o cientificismo exacerbado de sua época. A fala final de Patimau, que convenceu o povo que o grilo provém do ar com as folhas de coqueiro na junção da lua nova, foi:
“... e, se por ter aventado tão sublime verdade, fosse necessário aceitar a morte, ele a aceitaria ali mesmo, tão certo era que a ciência valia mais do que a vida e seus deleites”. (p. 323)
            Outro tema explorado nesse conto é o da relatividade entre a verdade e a mentira. Afinal o que é verdade, o que é mentira? Aqui a mentira se impõe como força indiscutível, uma verdade inquestionável por aqueles que na mentira acreditam. Não é o que ocorre, por exemplo, em ‘Noite de Almirante’, cujo engodo nasce de um lampejo provocado pela vergonha de Deolindo Venta Grande não ter concretizado seu encontro por meses esperado. Para não confessar o próprio fracasso, o recruta diz ter tido uma noite de almirante com sua amada. Foi uma farsa com sorriso amarelo!
            Também, de certa forma, reaparece a velha exploração do homem pelo homem, quando “verdades sociais”, criadas por homens, são impostas ao indivíduo, que as aceita como que capitulando à sua força. Ou também a tremenda força da opinião do outro, o ser social, que se torna uma segunda alma, como no conto ‘O Espelho”. Essas “verdades sociais” são verdadeiros dogmas, e como tais independentes de comprovação. Acredita-se e pronto. Eles estabelecem e moldam comportamentos individuais dentro da sociedade.


A PRINCIPAL INTERTEXTUALIDADE
            Portanto, além da autointertextualidade mostrada acima com as retomadas de temas, ‘O Segredo do Bonzo’ dialoga com a ‘Peregrinação’, obra de Fernão Mendes Pinto, publicada em 1614, e que suscitou muita polêmica sobre se todo o narrado estava correto, quer geograficamente, quer historicamente e até cronologicamente. Possivelmente escrita de memória, de 1570 a 1578, e com várias observações do autor, uma espécie de crônica autobiográfica de suas viagens e aventuras pelo Oriente, a obra, como se viu, só foi publicada muitos anos depois de escrita. Narra os acontecimentos da peregrinação do autor pelo Oriente, de 1531 a 1556. Acredita-se que algumas observações que o autor anotou nos originais não foram aproveitadas na composição final.
            Foi a brecha para Machado de Assis criar essa história do bonzo como um “Capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto”. E remete, já no início do conto, ficticiamente, seu leitor à ‘Peregrinação’, afirmando que “Atrás deixei narrado o que se passou nesta cidade Fuchéu, metrópole do reino de Bungo,...”. Bungo e Fuchéu realmente fazem parte das aventuras de Fernão Mendes Pinto.
CURIOSIDADES DE LEITOR
            Machado de Assis, como qualquer outro bom autor, vai jogando detalhes com aparência de insignificantes, mas que são dicas que justificam futuros acontecimentos da história. É o que ocorre com o detalhe que o autor passa entre parênteses na seguinte passagem:
“Diogo Meireles, que melhor conhecia a língua da terra, pois ali estivera muitos meses, quando andou com bandeira de veniaga (agora ocupava-se no exercício da medicina, que estudara convenientemente, e em que era exímio) ia-me repetindo pelo nosso idioma...” (p. 323)
            Ou seja, Diogo Meireles estivera na região comerciando (não se sabe se trapaceando ou não), mas depois o autor já nos alerta da nova especialidade dele, a dedicação profunda à medicina, e é por ser exímio nela que desnarigou os doentes de Fuchéu.
            Outro ponto curioso é que uma das seis experiências foi perpetrada pelo narrador, que teve de convencer os moradores de Fuchéu de sua insuperável arte de músico. Como será que o narrador fez seu discurso, já que ele não falava a língua de Bungo. Será que foi só usando ademanes? De qualquer forma, é questão de imaginar: é possível que Diogo Meireles o tenha ajudado. Talvez seja por isso que o narrador poucos detalhes tenha passado de sua própria experiência, preferindo destacar as dos dois outros colegas.


ANOTAÇÕES GRAMATICAIS
            Os textos machadianos oferecem toda gama de empregos gramaticais e alguns de forma inusitada. Neste ensaio, pela primeira vez, apresentarei alguns casos gramaticais curiosos. Assim:
a)    tanto que = logo que – diferente e inusitado emprego da palavra ‘tanto’ como o primeiro elemento de uma locução conjuntiva subordinativa temporal. Esse operador argumentativo aparece na frase “A multidão, tanto que ele acabou, levantou um tumulto de aclamações, que esteve a ponto de...” (p. 323). Ou seja, “logo que ele acabou,...”
b)    ‘cujo filho era’ – já no tempo de Machado de Assis esse pronome, que indica posse, não era usado com o sentido que aparece em “...mas enfim, estava feito, e todo redundava em glória do reino de Bungo, e especialmente da cidade Fuchéu, cujo filho era;...” (p. 323). Ou seja, seria modernamente “... especialmente da cidade Fuchéu, da qual era filho”.  Até meados do século XIX, ainda se usava esse pronome da forma que Machado de Assis empregou, exatamente porque a história criada ocorre no ano 1552. É uso semelhante a um exemplo que recolho da ‘Grammatica Philosophica  da Lingua Portugueza’, de 1866, de Jeronymo Soares Barbosa: “Restituir a coisa a cuja é”.  Isto é, ao dono dela.
Também era usado como pronome interrogativo, conforme nos mostra Said Ali, na sua ‘Gramática Histórica’, Ed. Melhoramentos, 3ª edição, 1964, página 111: “Cuja he esta barca que preste?” (Gil Vicente).
c) “em que” = durante os quais – há uma frase curiosa,  “E, feitos os
      cumprimentos, em que o alparqueiro chamou as mais galantes coisas a  
      Diogo Meireles, tais como – ouro da verdade e sol do pensamento,...” (p.
      324), na qual o autor usou o pronome relativo ‘que’ precedido da
     preposição ‘em’, mostrando que os elogios estavam num lugar (no
     discurso de cumprimento)  e não durante os cumprimentos. Mas essa
     segunda forma também ficaria bem, ou seja, “E, feitos os cumprimentos,
     durante os quais...”, o que mostraria que os elogios foram proferidos  
     durante os cumprimentos.   As duas seriam possíveis, mas a de
     Machado é sempre a melhor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
            Há muitos outros casos de gramática e outros enfoques que poderiam e podem ser abordados, mas para o intuito deste artigo, creio já ser o suficiente. Minha ideia é despertar cada vez mais interesse pela leitura real dos contos machadianos, combatendo assim a ‘leitura do ouvir falar’, com a qual muito tenho me deparado vida afora.
            Afinal, “a mentira de sua arte é daquelas que conseguem revelar muito da verdade de nossa complicada condição humana”, e essa mentira artística está em muitas e muitas das histórias criadas por esse gênero, mesmo algumas daquelas que foram compostas ao correr da pena, para preencher espaço nas folhas diárias da sua época.

*Prof. Leo Ricino

Mestre em Comunicação e Letras – professor na Fecap – Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado; instrutor na Universidade Corporativa Ernst & Young, São Paulo. 

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