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sábado, 29 de março de 2014
O JEITO PÓS-MODERNO DE BRÁS CUBAS
POR ROBERTO
SARMENTO LIMA*
Narrador privilegiado, porque fala após a morte, sem ter de esconder nada
de sua verdadeira personalidade, Brás Cubas apresenta, já no século XIX, traços
de uma tendência que mais tarde se convencionaria chamar de pós-moderna
Para quem acha que
já se disse tudo, ou quase tudo, sobre Memórias
Póstumas de Brás Cubas, penso que estou vendo mais alguma coisa que ainda
não foi seriamente trabalhada (nem é meu propósito avançar muito na proposta, no
exíguo espaço que tenho aqui, limitando-me a lançar pistas). Não quero
antecipar nada por enquanto, mas, sim, ir detectando pouco a pouco os rastros
deixados pelo defunto-autor. Talvez o título deste ensaio já denuncie meu
projeto de estudo; mas o que na verdade pretendo é estimular o saudável debate
crítico em torno dessa obra e não fechá-lo ou congelá-lo em um rótulo.
Esse
romance de Machado de Assis, como sabem todos, não tem um fulcro definido, mas desenvolve-se
por meio de ampla dispersão de assuntos, sem que um se sobreponha ao outro: as
memórias pendem ora para a revelação das intenções do narrador, entre elas a
invenção do emplasto, ora para o desfile de sua empáfia, com destaque para as conquistas
e os namoros que preencheram seus dias de ocioso, pois era rico e o dinheiro
nunca foi para ele uma preocupação. Também se meteu a fazer reflexões em torno
da própria construção do livro enquanto descrevia suas andanças pela vida. Em
geral, minimizava tudo, em comentários rasos e mesmo irrelevantes, como quem
escreve apenas para encher papel. Justamente por não ter nada de tão significativo
assim a dizer. Às vezes deixava isso muito claro, tal como aparece em uma única
frase que é o próprio capítulo, o CXXXVI, acertadamente chamado “Inutilidade”:
“Mas, ou
muito me engano, ou acabo de escrever um capítulo inútil.”
E só. Tinha uma visão minimalista das pessoas
e das coisas que o cercavam. Por isso é que sempre colocava assuntos variados —
uns, banais, outros, pretensamente elevados — em um mesmo patamar de
importância, situação em que recorria ao processo sintático da coordenação,
justamente para mostrar que uma coisa não valia mais do que a outra (se é que
alguma coisa valia):
“Agora, quero
morrer tranquilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas
baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o
som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de
um correeiro.”
Morte,
lágrimas de mulheres, balbucios dos homens, de um lado, chuva tamborilando nas
folhas da planta, som de uma navalha sendo amolada, de outro: eventos
misturados, em tom baixo e pequeno e igualmente inexpressivo. Algo muito
parecido com o famoso “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de
réis”, fazendo juntar na mesma prateleira, também por meio da coordenação de
termos, o amor e o dinheiro. Isso denota uma falta de profundidade no
enfrentamento de temas caros à literatura, como o amor e a morte. Personagens desse
tipo, meio vazias e superficiais, não dão o que E. Forster (de Aspectos do Romance, Porto Alegre,
Editora Globo, 1974) chamou de
“personagens redondas”, aquelas que são capazes de surpreender convincentemente
à medida que se desenrola o enredo. Brás Cubas é uma “personagem plana”, por se
definir o mesmo, sem esconder nada, o tempo todo. Até suas oscilações de estilo
e dicção já são previstas, desde o prólogo, e cheiram a irresponsabilidade ou
falta de compromisso. Pois ele tem, conforme afirmou de si mesmo, um trapézio
no cérebro, balançando para lá e para cá, fazendo “cabriolas de volatim”. Tal
tom perfunctório lembra o matiz do humor dos modernistas, dos poetas que
exercitaram o chamado poema-piada; ou, independentemente dessa prática, daqueles
que imprimiram ao verso certo descaso ou indiferença em relação à vida, como o
atesta o conhecido “Perdi o bonde e a esperança”, de Carlos Drummond de
Andrade. Machado de Assis, com essa estratégia criativa, esteve mais de meio
século na frente de sua época.
A
morte, tema denso e um dos mais importantes da tradição do romance, diz ainda
Forster, aparece nas Memórias Póstumas ou
como uma grande brincadeira, sem profundidade alguma, capaz de fazer o narrador
comparar-se a Moisés, em prejuízo deste, ou, como se vê no último capítulo,
como uma entrega total da personagem à mesmice, sem vislumbrar saídas para a
mediocridade da vida cuja rotina aponta para o eterno insignificante e
repetitivo:
“Divino
emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da
riqueza, porque eras a genuína e direta inspiração do céu. O acaso determinou o
contrário; e aí vos ficais eternamente hipocondríacos.”
Não
estamos na presença do sentimento de crise moderno, que atormenta e atordoa,
mas diante da sensação de crise permanente, que não perturba nem angustia. Daí
o humor:
“Esta é a
grande vantagem da morte, que, se não deixa boca para rir, também não deixa
olhos para chorar...”
PASTICHE SIM, PARÓDIA NÃO
Brás
Cubas se serve do mesmo tom irônico e leve quando tem de fazer considerações sobre
a escrita do romance, pontuando páginas com um modo de enxergar a literatura
que o aproxima muito do narrador moderno:
“Começo a
arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer (...)
Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica;
vício grave, e aliás íntimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor.
Muito
se falou da modernidade desse romance: pela escrita que se autorreflete e ao
mesmo tempo reflete sobre os caminhos da chamada crise da literatura e da
própria capacidade de representação (“Começo a arrepender-me deste livro”),
citando textos e autores, num exercício claro de metalinguagem e
intertextualidade escancarada. Além disso, o que se espera de um autor moderno?
Que ele se coloque como um instaurador da novidade estética, parodiando os
estilos que se foram, numa atitude de altivo desdém — sentimento que, aliás,
não falta a Brás Cubas:
“Ao verme
que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança
estas memórias póstumas.”
Apesar do tom
cáustico e irreverente, próprio de quem parodia o exemplo do outro, Brás Cubas não parodia exatamente,
embora não se possa afirmar que ele não faça isso, na sua crítica ácida à
sociedade e à própria literatura. No entanto, no que diz respeito à crise do
romance e dos métodos da composição narrativa, ele não está no mesmo campo
discursivo de Flaubert ou de Dostoiévski nem no do próprio Machado de Esaú e Jacó ou de Dom Casmurro, pois nesses autores e romances ainda se conta uma
história com um fio narrativo que se pega e se acompanha sem dificuldades e
pelo qual se hierarquizam temas e assuntos. Hierarquias de ações e respeito às
convenções da escrita romanesca não existem em Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Assim, de que tradição faz parte esse livro? Tem-se de ver que esse texto
machadiano inova completamente a cultura romanesca brasileira. Não havendo para ele, até a época de
sua publicação, um parâmetro literário com o qual pudesse ombrear ou ao qual pudesse
se contrapor, ele, na falta de um paralelo, se contrapõe a si mesmo, pois o
morto que fala não deixa de acicatar sua própria falibilidade e indigência moral
e até os próprios recursos intelectuais para escrever. No mais, chega a
reverenciar suas dívidas literárias, mostrando que pasticha o estilo de Sterne,
por exemplo:
“Trata-se,
na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre
de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens
de pessimismo.”
“Obra
difusa”, como diz o próprio narrador. Até aí, sem maior fôlego interpretativo,
pode-se supor que as Memórias Póstumas de
Brás Cubas são paródicas em alta voltagem. Não vejo isso nessa obra; antes,
há uma confirmação de valores,
valores em vigência na época em que Machado escreveu mais os valores que só o
tempo futuro poderia trazer e testemunhar, numa espécie de antevisão. Esta
análise pode surpreender, mas só se tivermos do tempo histórico uma imagem de
linha reta, quando, ao contrário, confio em que muito do que se vive tem
lacunas, avanços, retrocessos e antecipações, em franca relação dialógica. Não foi
à toa que, sendo o Brasil naquela época ainda uma nação escravista e governada
por um rei de origem portuguesa, mas atenta às mudanças da civilização do mundo
europeu, tenham convivido aqui, no mesmo espaço urbano, o cortiço de feitio
colonial e a florescente economia capitalista e, depois de 1902, fossem abertas
na cidade do Rio de Janeiro ruas largas e vistosas pelo prefeito Francisco
Pereira Passos, que fez do cenário citadino carioca, sobretudo a Avenida
Central (desde 1912, Avenida Rio Branco), uma tentativa de réplica de Paris,
enquanto, desde o fim do século XIX, as primeiras favelas se instalavam nos
morros daquela cidade. Futuro e presente se conjugam nessa realidade social, e
o passado, surpreendentemente, também teima em ficar.
Esteticamente,
conviviam parnasianismo e simbolismo: um era o passado que voltava com força e
vigor, o outro seria, inconscientemente talvez, o desejo de viver o que nem sequer
existia por aqui — as condições ideológicas e econômicas trazidas pelo avanço
tecnológico em meio à contrastante descrença na ciência e no progresso material
(muito pelo contrário, no Brasil dessa época pontificava o Positivismo, com seu
lema de ordem e progresso). Parnasianismo e simbolismo se fizeram como emulação
do modelo europeu, sem dúvida. Principalmente, o exótico simbolismo, que, para
nós, brasileiros, era carente de verdade histórica. Não significou aqui um
grito contra o esvaziamento da atividade artística no duro diálogo com as leis
capitalistas de mercado que fizeram da poesia mais uma mercadoria. Não
estávamos ainda vivendo o dilema nem o auge desse processo, pois ainda havia
por aqui escravos e senhores do interior rural dando as ordens, no campo e na
cidade.
Há
algo mais difuso do que isso? A convivência do antigo e do moderno, sem autenticidade
e sem confiança na modernidade transplantada, pode nos ter dado, sim, um Brás
Cubas, de discurso difuso e aparentemente contraditório. E, nesse caso, se foi
assim, o defunto-autor só faz mesmo, em sua prática escritural, é confirmar — não parodiar — esse estado
de coisas. Por uma leitura formalista, até se poderia dizer que o romance é de
fato paródico; mas, por uma abordagem estético-sociológica, as Memórias Póstumas são uma obra de
confirmação.
Não
é, portanto, a paródia o forte desse romance, como podem pensar à primeira
vista. Brás respeita os mestres que lhe deram sugestões formais, o que o leva
estilisticamente ao pastiche. Apenas, para desvio da atenção do leitor, o
discurso que se tece nesse romance simula ser flagrantemente desigual e
contraditório — mas, repito, ele é intrínseca
e internamente desigual e contraditório nele mesmo, em sua própria agenda
—, não em relação a um Flaubert ou a um Tolstoi. Falta a Brás Cubas ter a quem
parodiar no próprio sistema que habita, não sendo, pois, parâmetro para nenhum
autor semelhante de quem possa discordar.
TUDO JUNTO E MISTURADO
Muito
do que os modernos fizeram e que Machado de Assis soube tão bem elaborar e
aplicar a seus romances, num Brasil ainda muito acanhado literariamente, é
sinal de que o país, ainda que ofuscado pela ambição de parecer-se com os
grandes centros avançados europeus, refletia a miragem do colonizado diante do
portento do seu colonizador. A modernidade sul-americana é assim, como analisa
Néstor Canclini em Culturas Híbridas (São
Paulo, Edusp, 2006): nosso avanço tecnológico, então frágil e incipiente, não
conseguia corresponder a contento ao avanço das ideias e das manifestações
culturais, entre elas a literatura. Fundem-se, é verdade, traços da cultura
local com os do estrangeiro que serve de espelho às vezes, mas isso não
acontece sem que as contradições de base não sejam reveladas. Por isso, falar
da separação entre alta e baixa literatura ou entre cultura urbana e cultura rural
tem sido cada vez mais difícil e problemático, e não é fácil desde o caso das Memórias Póstumas, onde convivem muito
bem tanto o tom literário mais conservador, elitista, quanto a dicção
popularesca. Ou seja: nem chegamos a ser suficientemente modernos, somos de
algum modo pós-modernos, mas tudo, em filosofia e em arte, parece estar
inconcluso e mesclado dos mais diferentes tons.
De
um legado estético do passado, posso pinçar um exemplo que não me deixa mentir.
A busca de um discurso elevado, próximo do discurso culto e clássico — haja
vista o exemplo que coloco abaixo, parecendo ter saído de um solene verso de
Góngora, com suas gradações descendentes (“En tierra, en humo, en polvo, en
sombra, en nada”) —,
“A vida
estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a
consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma.” (grifo
meu)
termina por cruzar-se, sem que o narrador faça
a devida transição, com a oralidade brasileira mais típica:
“Jumento de
uma figa, cortaste-me o fio às reflexões.”
No
primeiro caso, Brás Cubas fala incorporando
o discurso barroco, como se isso fosse dele e do tempo dele, em verdadeiro
sincretismo estilístico. E o faz dentro da ótica do pastiche, não do da paródia.
Pois não zomba do modelo que usa. No segundo, a oralidade matuta que vem dos
sertões e do centro do país contamina o discurso pretensamente erudito e
encaixa-se naturalmente no texto. A tudo isso somem-se os ingredientes dos
costumes brasileiros, quase beirando a preguiça macunaímica, a ponto de ficar
irreconhecível o nosso homem letrado que tem o europeu como matriz do
pensamento:
“Tinha eu
conquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião; era um acadêmico estroina,
superficial, tumultuário e petulante (...) No dia em que a Universidade me
atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no
cérebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso.”
Essas incorporações
estilísticas, não se fixando em nada propriamente dito, mostram que não há um
norte a considerar, uma ideia diretriz, mas parece que o discurso e o mundo se
movem em constante — mas certamente imperceptível —mutação. Imperceptível,
porque o narrador se apressa em dizer
que “o livro anda devagar”. Mas anda! E move montanhas! Os tempos históricos e
estéticos não dialogam entre si como fontes de preparação e de transição de um
para o outro, nem o narrador se dá esse trabalho. A hibridez do estilo é vista
naturalmente, como se Machado de Assis tivesse podido antever a velocidade do
tempo que vivemos contemporaneamente, sem recuar, porém, do tempo em que viveu.
Assim, da matriz barroca à Góngora pula-se para a matriz parnasiana à Raimundo
Correia,
“Aí vinham a
cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a
pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza,
o amor (...)”
ou para a moderna, em que se proclamam alto
e bom som a fragmentariedade e a dissolução das partes (nascimento, meninice,
juventude) que organicamente poderiam estar relacionadas e não estão, pois tudo
se borra na e pela linguagem, sem junturas e conexões, como se vê neste “discurso
do método”:
“Vejam: o
meu delírio começou em presença de Virgília; Virgília foi o meu grão-pecado da
juventude; não há juventude sem meninice; meninice supõe nascimento; e eis aqui
como chegamos nós, sem esforço, ao dia 20 de outubro de 1805, em que nasci.
Viram? Nenhuma juntura aparente (...) De
modo que o livro fica assim com todas as vantagens do método, sem a
rigidez do método.”
Da
mesma forma, passa-se do registro culto para o popular. A que matriz afinal
pertence Brás Cubas? Possivelmente, a uma matriz que neutralize as
possibilidades de oposição e favoreça as de convivência da multiplicidade, já
que uma direção única e soberana, com direito a pano de fundo, parece ter sido
exaurida. Fica, então, a impressão de que tudo muda continuamente, sendo
sintoma disso a aversão a uma ideia fixa. Por quê? Porque a estabilidade não tem
mais lugar em um mundo que começa a ser governado pela lógica do capital
(Machado sentia isso? eis a hipótese). Por isso é que, também, não faz mais
sentido estabilizar-se numa constante estilística. Primeiro, quis vender a grife
que é o seu nome; depois que o projeto se mostrou inviável, sem justificativa
explícita para isso, ele aparece, no fim do livro, exprimindo-se em linguagem notadamente
econômica, dizendo que, apesar das venturas e desventuras vividas, “não houve míngua nem sobra” e ainda saiu “quite
com a vida” e chegou ao “outro lado do mistério com um pequeno saldo”, o de não ter casado nem tido
filhos, fato que, mal administrado (e o seria, sem dúvida), poderia significar
ruína ainda maior. Desperdício é coisa a evitar. Pensando assim, as inúmeras
digressões parecem inúteis e exorbitantes, mas não são, porque, no regime da
economia do livro, elas configuram e desenham esse traço pós-moderno segundo o
qual a metarreflexão é mais importante do que a realidade que se pretende
representar.
BRÁS CUBAS NO REALITY SHOW
Temos,
assim, um narrador às vezes cínico e às vezes solene, que diz abertamente o que
pensa e como agiu durante a vida toda, do nascimento à morte, passando pelas inúmeras
aventuras amorosas, sem maiores riscos e consequências, mesmo quando namorou
uma mulher de um figurão. Sua regra de conduta narratorial é falar o que vem à
cabeça, sem planejar, parecendo que as memórias são retalhos de lembranças
esparsas — e, no entanto, sabemos, há um método romanesco aí embutido para simular
incoerência e aleatoriedade —, e sem privilegiar este ou aquele assunto, que
tanto pode ser um encontro secreto com Virgília, na casinha administrada por
dona Plácida, quanto um breve comentário sobre o que teria dito a rainha de
Navarra acerca da iminência de descobrirem mais cedo ou mais tarde um amor
proibido. Em um caso, a narração de um encontro entre amantes pode interessar à
história que Brás conta; mas uma reflexão à toa, tirada de uma longínqua
rainha, em nada serve a essa mesma história, a ponto de ele mesmo afirmar que
tal capítulo, por ser totalmente dispensável, “não é sério”.
O
narrador das Memórias Póstumas, como
se vê, parece até que bebe; aliás, ele insinua tal metáfora no capítulo LXXI
intitulado “O Senão do Livro”, comparando seu estilo com o andar torto dos
bêbedos numa invectiva contra o ato narrativo que constrói e, de quebra, contra
o próprio leitor:
“Tu tens
pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e
nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os
ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram,
gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...”
Esta
é a criatura que não se envergonha de confessar suas fraquezas, seja como
homem, seja como narrador. Mostra tudo, não esconde nada, como ele mesmo diz no
capítulo CXI, “O Muro”:
“Não sendo
meu costume dissimular ou esconder nada, contarei nesta página o caso do muro.”
Todos,
então, podem saber de tudo, nada fica oculto ou disfarçado nas malhas do
discurso, que se oferece ao leitor sem artimanhas nem simbolismos, sem
metáforas ousadas, como aquela outra, a dos “olhos de ressaca”, que se vê em Dom Casmurro, objeto enigmático de tanta
especulação. Mal comparando, o
romance é exposição pura, como se narrador e outras personagens estivessem em
um reality show vigiado por câmeras
de televisão. Brás Cubas parece um homem de hoje, da chamada sociedade de
consumo, “sociedade pós-industrial”, no dizer de Fredric Jameson, em Pós-Modernismo: a Lógica Cultural do
Capitalismo Tardio (São Paulo, Ática, 1997). Ele quer é aparecer diante de
uma câmera e, por meio dela, atingir um público incomensurável, apesar de ter
esnobado, no prólogo ao livro, as “duas colunas máximas de opinião”, os
frívolos e os graves. Puro charme! O que ele deseja mesmo é ver seu nome
divulgado. Isso vale mais do que dinheiro, porque Brás Cubas é uma grife acima
de tudo. Uma sociedade pós-industrial já é pós-moderna, se se tomar o termo dentro
de um critério histórico-econômico bem definido, segundo uma concepção linear
de história. A sociedade brasileira daquela época, que nem tinha ainda passado
pelo fenômeno da industrialização moderna, adotava valores europeus para cá mal
transplantados, sem que a nossa base infraestrutural acanhada o permitisse ou
suportasse, e, assim mesmo (ou por isso mesmo), conseguiu produzir uma poesia
como a simbolista, alienada e deslocada do nosso contexto histórico. Então, se
assim é e a história já o comprovou, por que não seria possível um Brás Cubas
pós-moderno?
Nesse
quadro interpretativo avulta um Brás Cubas que se mostrou obcecado pela ideia
de fama e exibição pública de sua imagem. Morto, confessou a verdadeira
motivação daquilo que seria o seu invento, o emplasto Brás Cubas. É o que se lê
no capítulo II (“O Emplasto”) do livro que — imaginem! — oficializa o realismo
entre nós:
“Essa ideia
era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto
anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. (...)
Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que
influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores,
folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo?
Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas.”
Se
o leitor percebe bem (ou se me faço mesmo entender), estou pondo em discussão a
ideia, bastante ventilada, de que o processo narrativo das memórias de Brás
Cubas tem sólida configuração moderna e ponto final. Seguindo os passos de
alguns críticos, como João Alexandre Barbosa, que, no ensaio “A Modernidade do
Romance” (em A Leitura do Intervalo,
da editora paulistana Iluminuras, de 1990), teve até certo pejo em classificar
esse livro como romance, propondo um
rótulo, “escritura ficcionalizada”, que, se nada acrescenta do ponto de vista
teórico-metodológico à avaliação desse livro de Machado (o que quer dizer
escritura ficcionalizada? os textos literários, em geral, não o são?), ao menos
serve para mostrar que, no meio dos realistas de plantão, o autor de Dom Casmurro se destaca e revela, por
artes do ofício, a sua independência.
Mas
não pretendo parar por aí. Aproveitando palavras de João Alexandre, concordo —
em parte — com que o romance seja visto e analisado como moderno, por que não? Vendo
o romance no confronto com outras obras do mesmo período, comparando-se
sistemas (o sistema dos realistas europeus da época, de um lado, e o sistema
mais do que moderno, do outro, por sinal, este praticamente inexistente àquela
altura), Memórias Póstumas de Brás Cubas
apresenta uma superação do estilo vigente, o realismo, assim como ilumina as
características fundamentais do espírito renovador do romance, desde o fim do
século XIX, segundo palavras de João Alexandre: “ruptura com relação ao modelo
literário oitocentista”, “problematização de valores literários no amplo
movimento das ideias pós-românticas”, “desarticulação percebida no nível de
construção do texto”, “meditação acerca de suas próprias virtualidades”. Sim, Memórias Póstumas de Brás Cubas tem tudo
isso. Mas acho demais, ou precipitado, afirmar, como o fez Barbosa para
enquadrar bem esse romance na nossa nascente (e precária) modernidade, que,
nele, há um sentimento de “desconfiança em relação ao ajuste entre
representação e realidade”. Isso ocorreria de fato, mas desde que o narrador
fosse um homem do mundo dos vivos e vivesse exclusivamente nessa órbita. E se
espantasse com as coisas que ele experiencia. Nem uma coisa nem outra. Nem a
morte é, para ele, um espanto. A morte é o lugar de onde ele mira o passado,
confundindo-o com o presente, tecendo o futuro, sem pressa, com pachorra. É o
lugar de produção dos textos, sua central de produção, por onde ele visualiza
os recursos próprios de quem está produzindo
a realidade que deve ser passada na tela da televisão:
“(...)
expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um
pouco da eternidade.”
BRÁS JORNALISTA
Por
conseguinte, Brás Cubas não é da ordem daquele outro realismo, nem se pode compará-lo
a este. Ao fazer do narrador um “defunto-autor”, Machado já nos avisa que ele,
embora em certo sentido desarticule representação e realidade — pois não é nada
convencional esse modo de narrar, ao menos para aquele momento —, instaura um
nível de realidade todo próprio e particular. E, por isso, esquece (melhor do que dizer que parodia) o modelo do romance que
se praticava até então, o romance realista tradicional. Precisaria que outro
escritor, baseado nesse novo modo de relacionar discurso e realidade (o modelo
de Brás Cubas), escrevesse uma obra que revelasse tal desconfiança em relação a
esse insólito modo composicional, desarticulando-o, numa evocação metalinguística
de Brás Cubas. Este, na verdade, não desconfia da validade do modo narrativo de
Flaubert ou de Aluísio Azevedo, simplesmente porque os ignora. Para Brás, vale
o que ele disse no prólogo: o romance tem “umas aparências de puro romance” e,
de fato, não é o “romance usual”. Inaugura-se, pois, no meu Brasil brasileiro,
uma nova maneira de encarar a arte do romance, tornando-o único naquele momento.
Vamos,
então, às diferenças! Brás Cubas, a confiar em tudo que eu disse até agora, é
extremamente sincero, o que lhe foi possibilitado pela morte. Se tivesse
escrito enquanto vivia, não teria escrito esse livro, com essa aparência. A
sinceridade atinge a tudo: suas análises sobre relações com as pessoas e
particularmente com as mulheres, sua visão (de defunto, é claro) sobre a vida, a
hipocrisia e a escrita do romance. Não esconde o jogo; revela-o o tempo todo. Escreve
não como quem escreve romance (pelo menos aquele tipo de romance conhecido),
mas como se fosse um jornalista.
Sim
senhor, um autor metido a jornalista! Como um cronista, ou um historiador
apequenado, Brás Cubas escreve capítulos como “Genealogia”, à moda dos
cronicões portugueses medievais, em que se levanta a linhagem das famílias nobres
(no caso, a dele), ou capítulos como “Notas”, em que deixa impressões pessoais
após a morte do pai e em cujo final diz o seguinte, como o diria um jornalista:
“Isto que parece um simples inventário eram notas que eu havia tomado para um
capítulo triste e vulgar que não escrevo”. Já no capítulo XXII, “Volta ao Rio”,
depois de sua estada em Portugal, onde se formou em direito, reflete como um
jornalista, não como um romancista, sobre a escrita de um capítulo de romance:
“Vim... Mas
não; não alonguemos este capítulo. Às vezes, esqueço-me a escrever, e a pena
vai comendo papel, com grave prejuízo meu, que sou autor. Capítulos compridos
quadram melhor a leitores pesadões; e nós não somos um público in-folio, mas in-12, pouco texto, larga margem, tipo elegante, corte dourado e
vinhetas... principalmente vinhetas... Não, não alonguemos o capítulo.”
Brás
Cubas, como um provável técnico da arte da imprensa, parece dar orientação
sobre tipo de papel, gramatura, formato de folhas, vinhetas, tudo que for necessário
a um relato que se publica em jornal, aproveitando-se Machado, quem sabe, de
conhecimentos técnicos obtidos de sua experiência na tipografia de Paula Brito
quando era ainda adolescente. Da mesma forma, como um jornalista que é, pretende
escrever como se o espaço da página fosse de tal forma reduzido que o obrigasse
a economizar palavras (“Não, não alonguemos o capítulo”). Escrever muito poderia
significar esbanjamento à toa, desperdício que se pode encontrar em romances
pesadões, principalmente os realistas e naturalistas, repletos de informações,
descrições, detalhes sobre a vida das personagens — mas não em um jornal (“Às
vezes, esqueço-me a escrever, e a pena vai comendo papel, com grave prejuízo
meu, que sou autor”). Brás Cubas, como dirá no capítulo XLV, “Notas”, prefere
as notas ao capítulo, a brevidade à prolixidade. Usa novamente a linguagem de
jornalista e de tipógrafo no capítulo XXXVIII, “A Quarta Edição”, em que dá a
entender que a vida de um homem se reconcilia com as vidas anteriores,
ampliando-as, aperfeiçoando-as. A vida, como o texto, pode ser revista,
ampliada e melhorada.
Como
bom jornalista, tem de ser mais sincero e menos dramático. Por isso é que,
depois de separar-se de Virgília, Brás disse, no capítulo CXV, “O Almoço”, que
não a viu partir e que sentiu uma mistura proporcionada de alívio e saudade. Ao
contrário do que esperam dele, especialmente naquele dia, não lamentou o fato da
separação e até almoçou muito bem: “Comia-se com a boca, com os olhos, com o
nariz”. Se tivesse perdido o apetite e chorado, “seria romanesco; mas não seria
biográfico”, completa ele. Vitória do jornalista, ruína do romancista. Não por
acaso, ele, anos mais tarde, na sua maturidade, funda um jornal oposicionista
ao governo, o que lhe causou um dissabor doméstico: a ruptura com o cunhado, o
Cotrim.
Há,
praticamente em todas as páginas desse romance, uma linguagem de brevidade e
parcimônia que não combina com os romances escritos no século XIX, nem aqui,
nem alhures. É linguagem de jornalista, de revisor de si mesmo e de homem que
contempla as exigências do mercado. Certamente,
de todos os romances de Machado de Assis Memórias
Póstumas de Brás Cubas é o menos comercial, o que causa ainda arrepio nos
leitores adolescentes, que têm certa dificuldade em acompanhar o fio lógico da
narrativa em geral entremeada de considerações sobre o processo de escrita do
próprio romance. Mas, em compensação, é o mais jornalístico: capítulos breves, anotações
necessárias e fuga do ornamental e do detalhe. Tem ar de crônica. Maior
transparência daquilo que se quer dizer também. Isso é um princípio
contemporâneo, pós-moderno, pois não há pretensão a grandes painéis ou a
análises densas e herméticas. Lá se foi a modernidade desse texto que João
Alexandre Barbosa, em sua perplexidade de crítico, classificou de “escritura
ficcionalizada”, para não dizer nada que já não soubéssemos a respeito do
livro. Tento ver também, ao lado do moderno, o que há de pós-moderno nas Memórias Póstumas, mas um pós-moderno
que é um jeito, uma atitude, não um estilo, “um modo de operar”, como teoriza
Umberto Eco em seu Pós-Escrito a O Nome
da Rosa, livreto de 1984. Aliás, moderno também não é um estilo (estilo é o
modernismo), se é que me entendem.
Diz
Eco, numa visão meta-histórica do problema conceitual: “Podemos dizer que cada
época tem seu próprio pós-moderno”. É o reconhecimento de que não se pode ir
mais além das rupturas já realizadas pelos modernos, fazendo-se quase a mesma
coisa que estes: fragmentação do discurso, intertextualidade declarada,
metalinguagem romanesca. Só resta mesmo é revisitar o moderno, respeitá-lo, não
destruí-lo. Ou, já em outro campo teórico, como diz Canclini, a pós-modernidade
tem de ser entendida, no caso bem especial dos latino-americanos, “não como uma
etapa ou tendência que substituiria o mundo moderno, mas como uma maneira de
problematizar os vínculos equívocos que ele armou com as tradições que quis
excluir ou superar para constituir-se”. Assim também Brás Cubas, no capítulo XX
(“Bacharelo-me”), lançou os olhos para o futuro mas teve de reter o olhar no
passado, indo “ao longe, no horizonte misterioso e vago”, num movimento em que
“uma ideia expelia a outra”, desejoso, como ele mesmo diz ao fim do capítulo,
“de prolongar a Universidade pela vida adiante...”, nas suas idas e vindas. O defunto-autor, sem sentimentos
destrutivos, sem utopias nem garantias das projeções que lança, fez da vida da
personagem-título um filme ou um espetáculo morno a que ele, dobrando-se em
dois, o morto e o vivo, assiste da plateia — do mesmo modo como o faria um
repórter, observando os fatos que registra e comenta.
*
Roberto Sarmento Lima é doutor em
Letras e professor da Universidade Federal de Alagoas (sarmentorob@uol.com.br)
sexta-feira, 21 de março de 2014
“...
a prosa machadiana, (...) continua viva e presente, e presente e viva
permanecerá ainda por muito tempo, porque a mentira de sua arte é daquelas que
conseguem revelar muito da verdade de nossa complicada condição humana.” (Domício
Proença Filho, ‘Os Melhores Contos de Machado de Assis, Global Editora, 1986,
São Paulo e Rio de Janeiro, p. 16)
O CONTO
À semelhança de a ‘Peregrinação’,
de Fernão Mendes Pinto, obra que lhe serviu de mote, esse conto ‘O
Segredo do Bonzo’ narra as aventuras de dois viajantes, o narrador e
Diogo Meireles, na cidade Fuchéu, metrópole do reino de Bungo. Além de outros
Diogos, na ‘Peregrinação’ havia um
Diogo Zeimoto, português que, em terras nipônicas, passou por experiência
semelhante à de Diogo Álvares Correia, o nosso Caramuru, assim conhecido,
segundo verdadeira lenda, por ter disparado tiro de mosquete para o ar e
assustado muito os indígenas brasileiros, que nunca tinham visto tal artefato e
por isso o chamaram de Caramuru, moreia, expressão depois romantizada por Santa
Rita Durão com o significado de “Homem do Trovão”, no seu ‘Uraguai’. Esse Diogo Zeimoto
esteve em Fuchéu com Fernão Mendes Pinto.
Bonzo é um sacerdote budista, mas essa palavra
também se aplica às pessoas impassíveis, insensíveis, aquelas cientes de que
praticam um ato não totalmente dentro da ética mas em nada se abalam com isso.
Como se trata de um conto machadiano, as duas possibilidades apresentam-se ao
leitor com o mesmo peso.
Aliás, uma das personagens, o bonzo criador da teoria que
justifica as ações das demais personagens, expressa isso com muita clareza:
“...
e depois de reconhecer que a entendíamos, incitou-nos a praticá-la, a
divulgá-la cautelosamente, não porque houvesse nada contrário às leis divinas
ou humanas, mas porque a má compreensão dela podia daná-la e perdê-la em seus
primeiros passos;...” (p. 325, obras completas, vol. II)
Como sempre faço aqui, procuro não detalhar muito o
enredo da história, para que o leitor se sinta curioso e vá lê-la na íntegra,
na fonte. Os acontecimentos narrados no conto ocorrem na cidade Fuchéu (vou
manter assim, como Machado de Assis escreveu no conto, e não cidade de Fuchéu)
e se desenvolvem a partir de seis crenças impingidas à população da cidade, as
quais se transformaram em verdadeiros mitos e dogmas. Dogmas, diga-se e
reforçando, realmente inquestionáveis.
AS
EXPERIÊNCIAS
Um bonzo, de nome Pomada, mais esperto e mais experiente
(já tinha vivido 108 anos) que os outros bonzos da cidade Fuchéu, depois de
muito meditar, refletir, pesquisar, exaurir suas forças nessa busca, fez uma
grande descoberta:
“Considerei
o caso, e entendi que, se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na
realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que
das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da
realidade, que é apenas conveniente” (p.
325, idem)
Essa doutrina nasceu,
explica o bonzo, da crença de que existia uma pedra da lua com quilates tais
que, colocada “no cabeço de uma montanha ou no píncaro de uma torre” iluminaria
uma província inteira, por mais dilatada que fosse. Tal pedra nunca existiu,
mas muitos juravam que existia e outros diziam que a viram com seus próprios
olhos. Vale, pois, a opinião e não o fato.
Essa foi, digamos, a primeira experiência. A segunda já
foi perpetrada por um seguidor de Pomada, Patimau, que fez o povo acreditar que
os grilos “procediam do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova”.
Languru, outro adepto da filosofia de Pomada, também convenceu o povo de Fuchéu
de que a terra seria inteiramente destruída e a vida futura estaria numa gota
de sangue de vaca, o que justificaria “o ardor com que esse distinto animal era
procurado por muitos homens à hora de morrer;...”.
Tanto Patimau quanto Languru eram idolatrados em Fuchéu,
como filósofos, físicos e doutores, conhecedores de algo superior, não
acessível ao vulgo. Suas doutrinas eram inquestionáveis pelos fucheuenses.
Admirados com essa crença inabalável da população em algo
incrível e ilógico, o narrador e Diogo Meireles vão se inteirar da doutrina de
Pomada. Ouvem-na, assimilam-na e aplicam-na, juntamente com um amigo de Diogo,
um tal Titané, alparqueiro em Fuchéu.
Esse Titané convence a população da inigualável e milagrosa
excelência de suas alparcas (alpercatas, ou mais simplesmente sandálias presas
aos pés por tiras de couro ou pano), usadas por nobres, príncipes, reis,
monges, etc. O povo crê nessa história e a venda delas ganha foros
astronômicos.
O narrador, dono da mais modesta experiência, usando
também o recurso dos ademanes, convenceu a população de sua excelência como
músico, reconhecido e aplaudido como tal. De fato, o que não interessava, já
que não é o fato que importa mas a versão dele, ele chegava a ser razoável,
senão medíocre, como músico.
E finalmente a absurda e convincente experiência
engendrada por Diogo Meireles, médico. Grassava em Fuchéu uma epidemia horrenda
que dilatava e volumava absurdamente o nariz do doente. Todos os médicos
tentaram convencer os acometidos dessa tragédia a se desnarigar, acabando com o
incômodo e o peso, mas os doentes preferiam o excesso à ausência.
Numa conferência não contestada pelos sábios locais, ao
contrário, por eles confirmada, pois tinham medo de demonstrar que desconheciam
o que era exposto, Diogo Meireles disse que existia um nariz metafísico que
substituiria com muita vantagem o narigão físico e doente. Ninguém via,
afirmava o físico (na época, um médico era um físico) enfaticamente, mas o
nariz metafísico lá estava. Convencidos, os doentes se deixaram desnarigar,
aceitavam o nariz metafísico e alguns chegavam a assoar esse nada que traziam
no rosto. Se pudéssemos ousar, diríamos que esse nariz metafísico é o mesmo
nariz de palhaço que caracteriza quem acredita em qualquer coisa, aliás é o
nariz que a maioria dos políticos afixa em nossa cara.
RETOMADAS
TEMÁTICAS
Tenho mostrado nesses ensaios que Machado de Assis repete
temas e, magistralmente, consegue criar novas histórias. Nesse ‘O Segredo do Bonzo’, sentimos a velha
ironia contra o cientificismo exacerbado de sua época. A fala final de Patimau,
que convenceu o povo que o grilo provém do ar com as folhas de coqueiro na
junção da lua nova, foi:
“...
e, se por ter aventado tão sublime verdade, fosse necessário aceitar a morte,
ele a aceitaria ali mesmo, tão certo era que a ciência valia mais do que a vida
e seus deleites”. (p. 323)
Outro tema explorado nesse conto é o da relatividade
entre a verdade e a mentira. Afinal o que é verdade, o que é mentira? Aqui a
mentira se impõe como força indiscutível, uma verdade inquestionável por
aqueles que na mentira acreditam. Não é o que ocorre, por exemplo, em ‘Noite de Almirante’, cujo engodo nasce
de um lampejo provocado pela vergonha de Deolindo Venta Grande não ter concretizado
seu encontro por meses esperado. Para não confessar o próprio fracasso, o
recruta diz ter tido uma noite de almirante com sua amada. Foi uma farsa com
sorriso amarelo!
Também, de certa forma, reaparece a velha exploração do
homem pelo homem, quando “verdades sociais”, criadas por homens, são impostas
ao indivíduo, que as aceita como que capitulando à sua força. Ou também a
tremenda força da opinião do outro, o ser social, que se torna uma segunda
alma, como no conto ‘O Espelho”. Essas
“verdades sociais” são verdadeiros dogmas, e como tais independentes de
comprovação. Acredita-se e pronto. Eles estabelecem e moldam comportamentos
individuais dentro da sociedade.
A
PRINCIPAL INTERTEXTUALIDADE
Portanto, além da autointertextualidade mostrada acima
com as retomadas de temas, ‘O Segredo do
Bonzo’ dialoga com a ‘Peregrinação’,
obra de Fernão Mendes Pinto, publicada em 1614, e que suscitou muita polêmica
sobre se todo o narrado estava correto, quer geograficamente, quer historicamente
e até cronologicamente. Possivelmente escrita de memória, de 1570 a 1578, e com
várias observações do autor, uma espécie de crônica autobiográfica de suas
viagens e aventuras pelo Oriente, a obra, como se viu, só foi publicada muitos
anos depois de escrita. Narra os acontecimentos da peregrinação do autor pelo
Oriente, de 1531 a 1556. Acredita-se que algumas observações que o autor anotou
nos originais não foram aproveitadas na composição final.
Foi a brecha para Machado de Assis criar essa história do
bonzo como um “Capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto”. E remete, já no início
do conto, ficticiamente, seu leitor à ‘Peregrinação’,
afirmando que “Atrás deixei narrado o que se passou nesta cidade Fuchéu,
metrópole do reino de Bungo,...”. Bungo e Fuchéu realmente fazem parte das
aventuras de Fernão Mendes Pinto.
CURIOSIDADES
DE LEITOR
Machado de Assis, como qualquer outro bom autor, vai
jogando detalhes com aparência de insignificantes, mas que são dicas que justificam
futuros acontecimentos da história. É o que ocorre com o detalhe que o autor passa
entre parênteses na seguinte passagem:
“Diogo
Meireles, que melhor conhecia a língua da terra, pois ali estivera muitos
meses, quando andou com bandeira de veniaga (agora ocupava-se no exercício da
medicina, que estudara convenientemente, e em que era exímio) ia-me repetindo
pelo nosso idioma...” (p. 323)
Ou seja, Diogo Meireles estivera na região comerciando
(não se sabe se trapaceando ou não), mas depois o autor já nos alerta da nova
especialidade dele, a dedicação profunda à medicina, e é por ser exímio nela
que desnarigou os doentes de Fuchéu.
Outro ponto curioso é que uma das seis experiências foi
perpetrada pelo narrador, que teve de convencer os moradores de Fuchéu de sua
insuperável arte de músico. Como será que o narrador fez seu discurso, já que
ele não falava a língua de Bungo. Será que foi só usando ademanes? De qualquer
forma, é questão de imaginar: é possível que Diogo Meireles o tenha ajudado.
Talvez seja por isso que o narrador poucos detalhes tenha passado de sua
própria experiência, preferindo destacar as dos dois outros colegas.
ANOTAÇÕES
GRAMATICAIS
Os textos machadianos oferecem toda gama de empregos
gramaticais e alguns de forma inusitada. Neste ensaio, pela primeira vez,
apresentarei alguns casos gramaticais curiosos. Assim:
a)
tanto
que
= logo que – diferente e inusitado
emprego da palavra ‘tanto’ como o
primeiro elemento de uma locução conjuntiva subordinativa temporal. Esse
operador argumentativo aparece na frase “A multidão, tanto que ele acabou, levantou um tumulto de aclamações, que esteve
a ponto de...” (p. 323). Ou seja, “logo
que ele acabou,...”
b)
‘cujo
filho era’ – já no tempo de Machado de Assis esse
pronome, que indica posse, não era usado com o sentido que aparece em “...mas
enfim, estava feito, e todo redundava em glória do reino de Bungo, e
especialmente da cidade Fuchéu, cujo
filho era;...” (p. 323). Ou seja, seria modernamente “... especialmente da
cidade Fuchéu, da qual era filho”. Até meados do século XIX, ainda se usava esse
pronome da forma que Machado de Assis empregou, exatamente porque a história
criada ocorre no ano 1552. É uso semelhante a um exemplo que recolho da
‘Grammatica Philosophica da Lingua
Portugueza’, de 1866, de Jeronymo Soares Barbosa: “Restituir a coisa a cuja é”. Isto é, ao dono dela.
Também
era usado como pronome interrogativo, conforme nos mostra Said Ali, na sua
‘Gramática Histórica’, Ed. Melhoramentos, 3ª edição, 1964, página 111: “Cuja he esta barca que preste?” (Gil
Vicente).
c) “em que” = durante os quais – há uma frase curiosa, “E, feitos os
cumprimentos, em que o alparqueiro chamou as mais galantes coisas a
Diogo Meireles, tais como – ouro da verdade e sol do pensamento,...” (p.
324), na qual o autor usou o pronome relativo ‘que’ precedido da
preposição ‘em’, mostrando que os elogios estavam num lugar (no
discurso de cumprimento) e não durante os cumprimentos. Mas essa
segunda forma também ficaria bem, ou seja, “E, feitos os cumprimentos,
durante os quais...”, o que mostraria que os elogios foram proferidos
durante os cumprimentos. As duas seriam possíveis, mas a de
Machado é sempre a melhor.
cumprimentos, em que o alparqueiro chamou as mais galantes coisas a
Diogo Meireles, tais como – ouro da verdade e sol do pensamento,...” (p.
324), na qual o autor usou o pronome relativo ‘que’ precedido da
preposição ‘em’, mostrando que os elogios estavam num lugar (no
discurso de cumprimento) e não durante os cumprimentos. Mas essa
segunda forma também ficaria bem, ou seja, “E, feitos os cumprimentos,
durante os quais...”, o que mostraria que os elogios foram proferidos
durante os cumprimentos. As duas seriam possíveis, mas a de
Machado é sempre a melhor.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Há muitos outros casos de gramática e outros enfoques que
poderiam e podem ser abordados, mas para o intuito deste artigo, creio já ser o
suficiente. Minha ideia é despertar cada vez mais interesse pela leitura real
dos contos machadianos, combatendo assim a ‘leitura do ouvir falar’, com a qual
muito tenho me deparado vida afora.
Afinal, “a mentira
de sua arte é daquelas que conseguem revelar muito da verdade de nossa
complicada condição humana”, e essa mentira artística está em muitas e
muitas das histórias criadas por esse gênero, mesmo algumas daquelas que foram
compostas ao correr da pena, para preencher espaço nas folhas diárias da sua
época.
*Prof. Leo Ricino
Mestre em Comunicação e
Letras – professor na Fecap – Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado;
instrutor na Universidade Corporativa Ernst & Young, São Paulo.
terça-feira, 11 de março de 2014
Alguns estudiosos afirmam que a
língua portuguesa é machista e apresentam pelo menos duas razões para isso: se
numa sala há uma multidão de mulheres e apenas um homem, a concordância se fará
no masculino plural; se uma pessoa quer agredir um homem, é a mãe dele que ela
xinga; além disso, há nomes que são elogios para o homem e agressões à mulher:
a um homem se pode chamar touro ou garanhão, mas chamar a mulher de vaca ou de égua é ofendê-la. À primeira vista esses argumentos
parecem ter fundamento. Ledo engano.
A língua se caracteriza pelos
instrumentos gramaticais, como flexões nominais e verbais, artigos, preposições
e conjunções, por exemplo. O vocabulário, isto é, as palavras reais, não
caracterizam a língua. Ê por isso que o inglês é considerado língua germânica e
não latina, apesar de ter uma quantidade significativa de palavras latinas no
seu léxico. Da mesma forma, o romeno é considerado língua latina, apesar da
grande quantidade de palavras eslavas em seu dicionário. É basicamente o
vocabulário o que distingue o português do Brasil do português de Portugal, ou
o português brasileiro do morro do português brasileiro do asfalto. Ninguém
deixaria de reconhecer como legitimamente portuguesa uma frase como “O
office-boy, com uma pizza de mozarela, flertou com as garçonetes no hall do
drive-in’, em que não existe uma única palavra portuguesa (Office-boy, hall e
drive-in são palavras inglesas, como a raiz de “flertou”; pizza e mozarela são nomes italianos; garçonete é nome
francês. O que caracteriza a frase como portuguesa são os instrumentos
gramaticais: os artigos, as preposições, a flexão verbal, o número, o gênero.)
Um falante pode
inventar um substantivo novo ou um verbo novo, mas não poderá inventar um
gênero diferente nem uma conjugação diferente, porque é a gramática que faz a
língua e não o dicionário. Para inventar palavras, não é necessário utilizar os
recursos de formação vocabular que a língua põe à disposição dos falantes, como
sufixos e prefixos. Basta respeitar os padrões fonológicos da língua. Ao
inventar o “imexível”, Magri utilizou recursos
existentes na língua, e o resultado foi
perfeitamente compreensível, aceitável e de acordo com outras formações
lexicais já existentes, como “ilegível”, por exemplo.
Mas, ao inventar “hiputrélico”, em Tutaméia, Guimarães Rosa só respeitou os padrões silábicos e fonológicos
da língua, o que deu uma configuração portuguesa à palavra, mas nenhum sentido,
uma vez que nenhum falante poderá saber o que essa palavra significa, a menos
que o próprio autor o diga.
Assim, quando utiliza um termo
agressivo para a mulher mas elogiativo para o homem, o falante é que está sendo
machista, e não a língua, porque a escolha das palavras é exclusivamente
responsabilidade sua. Mas, quando usa o feminino, o plural, ou conjuga um
verbo, a responsabilidade é da língua, porque é a língua e não o falante que
determina o gênero ou a flexão verbal. Assim “Deus” é masculino não porque a
língua é machista, mas porque “Deus” não tem o “a” do feminino. O feminino é
que tem a marca de gênero, em português. O masculino é, na verdade, a ausência
de gênero. Por isso, pronomes como ‘quem”, “aquilo”, “isto”, “nada”, “tudo”,
“alguém”, “ninguém”, etc. exigem concordância no masculino, que não é gênero.
Aliás, o masculino deveria chamar-se “neutro” ou “gênero não marcado” por
oposição ao feminino, que é gênero marcado. Da mesma forma, eu sei que “prato”
é singular, porque não tem o “s” de plural. Apenas o plural é número marcado em
português. O singular, como o masculino, não tem marca.
Assim, se há muitas mulheres e
apenas um homem num lugar, a concordância no masculino apenas assinala que não
se está especificando gênero nenhum, que não se está privilegiando ninguém.
Com relação a nomes que são
elogios para o homem e ofensas para a mulher, como pistoleiro/pistoleira, homem
público/mulher pública, touro/vaca, aventureiro/aventureira, cão (melhor amigo
do homem)/cadela (prostituta), etc., não
há neles nada que permita concluir que a língua seja machista, porque se trata de vocábulos, de itens lexicais, de palavras de livre
escolha do falante, sem imposição da língua.
Se o falante tem o direito de inventar uma palavra (falso lexema), como fez Guimarães Rosa com o seu “hiputrélico”,
ele não tem o direito de inventar um gênero novo, um
plural diferente ou uma flexão verbal própria.
Os instrumentos gramaticais são impostos ao falante, mas o vocabulário,
não. Assim, não é a língua que é machista, mas o
falante, quando usa nomes elogiativos para o homem
e ofensivos para a mulher.
*José Augusto Carvalho, mestre em
Linguística pela Unicamp e Doutor em Letras pela USP, é autor de um Pequeno Manual de Pontuação em Português
e de uma Gramática Superior da Língua
Portuguesa, ambos em segunda edição pela Thesaurus.
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