O EU
LÍRICO
OU
NOTA DE ESCLARECIMENTO
Cláudia
S. Coelho*
EU
LÍRICO 0001
Lutar com
palavras
É a luta
mais vã.
Carlos Drummond de Andrade
Concordo com Drummond
em gênero , número e grau.
Sim, as
palavras, assim como as ideias, vêm, vão, e nada nem ninguém consegue detê-las.
Elas assumem corpo, identidade e chegam a se apropriar de quem as usa – em
especial, escritores, escritores, compositores... todos que fazem dela sua
matéria-prima.
É preciso,
no entanto, discernir o criador da criatura; o autor da obra.
Exatamente
por isso decidi escrever esta nota de esclarecimento sobre o Eu Lírico.
Meses
atrás postei o poema Cosmopo-vita -
ou Diálogo com o Vazio [cuja versão reduzida segue abaixo], o qual deu
margem a tamanha controvérsia, a ponto de ter recebido uma enxurrada de e-mail
de alguns conhecidos com o telefone de contato de seus psiquiatras. A polêmica
chegou a tal ponto que me vi obrigada a escrever esta Nota de Esclarecimento:
-Não! Não
estou deprimida! Introspectiva, talvez. Quiça meu Eu Lírico!
A
confusão entre narrador e autor, em especial em textos poéticos, é tamanha que
por eu usar, por vezes, português castiço em meus textos, alguns de meus
leitores acreditam que eu seja da “terrinha”, uma autêntica portuguesa.
O início
desse poema nasceu há muito tempo e foi resgatado durante minha mudança –
mudança de casa, mudança de vida, mudança... Ele estava em um caderninho de
anotações junto a meus guardados e, por obra do mero acaso, aberto nas páginas
abaixo. O texto, a princípio, tinha como foco uma bailarina, mas ao lê-lo, em
outro momento de vida, optei por usá-lo como exercício, criando um Eu Lírico
que se valesse de palavras que rimassem, fizessem sentido, gerassem tensão e se
transformassem em imagens. Simples assim.
BOX – ESBOÇO DE COSMOPO-VITA
EU LÍRICO 0002
esboço de Cosmopo-Vita
COSMOPO-VITA OU DIÁLOGO COM O VAZIO
(na íntegra em http://ritualdoalimento.blogspot.com.br/2013/07/09-de-julho-cosmopo-vida.html)
Na ressaca do sono,
de noites perdidas,
tento, intento,
acercar-me de ti.
Vagando ao acaso,
no brilho do ocaso,
te testo, incesto,
Replicas por fim:
Sou o amor momento,
mero alento,
fugaz sentimento
sem nenhum intento...
Encontro fortuito,
sem qualquer intuito,
o Nada em si,
(na íntegra em http://ritualdoalimento.blogspot.com.br/2013/07/09-de-julho-cosmopo-vida.html)
Na ressaca do sono,
de noites perdidas,
tento, intento,
acercar-me de ti.
Vagando ao acaso,
no brilho do ocaso,
te testo, incesto,
Replicas por fim:
Sou o amor momento,
mero alento,
fugaz sentimento
sem nenhum intento...
Encontro fortuito,
sem qualquer intuito,
o Nada em si,
simples assim.
EU LÍRICO 0003
O que
leva à pergunta:
- Mas
afinal o que é o Eu Lírico? Tão descerrado; tão pouco compreendido.
Primeiramente
um pouco de história.
O termo
“lírico”, tem origem no latim, lyrìcus,a,um,
de lyra,ae ou lira - instrumento musical. Na antiguidade
referia-se a uma composição poética para ser cantada com acompanhamento da lira
e, por extensão de sentido, passou a definir uma obra em verso feita para
canto, ou própria para ser musicada. Com a chegada do século XV, a palavra
poética passou a ser declamada e afastou-se do som lírico, mas o termo
continuou a ser ligado à produção literária, em especial à poética.
Voltando
ao Eu Lírico – também chamado de eu Poético – este é o “eu” que fala no texto e
não expressa, necessariamente, os sentimentos do autor, mas, sim, os do Eu
Poético. Ele é a “voz” que fala no poema ou texto em prosa e expressa ideias,
emoções, pensamentos, vivências... que podem coincidir ou não com as do
escritor. A validade estética de um texto independe de ele representar ou não a
verdade do autor. O autor é, portanto, livre para usar sua criatividade para
ser quem ou o quê queira representar e para transformar a realidade da forma
que lhe aprouver.
Sábias
são as palavras do crítico Yves
Stalloni, quanto à concepção do eu Lírico:
[...] O
lirismo é a emanação de um eu – que o romantismo gostava de confundir com a
pessoa dopoeta, mas que pode se apagar por detrás de uma de suas personagens.
STALLONI,
Yves. Os gêneros literários. Rio de Janeiro: Difel, 2001, p.151
Portanto,
o Eu Lírico que escolhi fala por mim, mas não representa quem Sou, como estou e
reitero:
No
entanto, cabe aqui uma ressalva, dificilmente alguém conseguirá escrever, falar,
se expressar com propriedade sobre tristeza, amor, decepção sem nunca ter
experienciado tais sentimentos, muito embora não seja preciso ter sido
violentado para escrever a respeito da dor do estupro – o primordial é sentir
empatia pelas pessoas que o foram, conseguir sentir na alma sua comoção, pesar,
para não se tornar mero narrador de um discurso vazio - pois, como afirmou Fernando Pessoa – o poeta
multifacetado, cujos heterônimos podem ser considerados diferentes eu Líricos
-, em seu poema “Autopsicografia”:
EU LÍRICO 0004
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
Para
conseguir se expressar com veracidade a maior parte dos escritores, atores,
bailarinos artistas enfim, usam um recurso chamado “resgate”.
Usando como
exemplo mais uma vez o estupro, o artista “mergulha” na personagem e “resgata”
em sua memória afetiva momentos em que tenha sido violado em seus princípios e
transpõe a intensidade dessa dor para seu Eu Lírico ou Poético.
Infelizmente,
por desconhecimento, alguns não discriminam o ator da personagem; o autor do
texto; o poeta do sofrimento. O que seria de Anthony Hopkins se ele tivesse em
si Hannibal Lecter, o psicopata brilhantemente interpretado no filme “O
Silêncio dos Inocentes”? Um ser sem qualquer traço de consciência. De Carlos
Drummond de Andrade se fosse a própria encarnação de José, o foco de um de seus poemas? Um homem
perdido; sem eira nem beira?
EU LÍRICO 0006
Dizem que
a vida imita a arte - que a arte imita a vida. Tanto faz, uma não vive sem a
outra, uma não invalida a outra.
Artistas,
de modo geral, são pessoas intensas que observam o mundo sob uma ótica
distinta, taxados, por vezes, de modo pejorativo, como excêntricos.
Sua visão
de mundo não condiz com a da sociedade do espetáculo, do hiperprazer, do
hipermomento, do hipernada, do hipertudo – tão fugaz, tão efêmera - e esta às
vezes, incomoda, toca a ferida, cutuca a casa de marimbondos dormente em nosso
interior.
Vivemos
na sociedade do “Vamos em frente que atrás vem gente!”, do “Cada um por si,
Deus por todos”, da “Ausência e da Aparência” (ou da felicidade sem lembranças)
– na Era do Vazio.
Não digo
com isso que devamos nos deixar levar pela depressão, pelo negativismo, mas,
sim, ter uma visão crítica de nosso momento. Caso contrário, os filhos, dos
filhos, de nossos filhos, continuarão a viver um jogo de gato e rato, um jogo
de aparências no qual - parafraseando José Saramago: “Viverão em uma espécie de
Luna Park”, na “Caverna de Platão” vislumbrando, quando muito, parcas imagens
da realidade, presos pelos grilhões do imediatismo, da ostentação, da tirania
do cotidiano, da ilusão hedonista.
- Não!
Não estou deprimida. Só desejo manter-me lúcida perante à sociedade do
espetáculo.
Atenta e
afastada do hiperuniverso que nos abarca e faz sofrer.
Quero,
como já disse, ser íntegra comigo mesma. Minuto após minuto, dia após dia,
sempre.
E nada
mais apropriado do que uma citação de Fernando Pessoa para mostrar que o vazio
não é uma invenção do homem contemporâneo:
“Com uma
tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode um homem de
sensibilidade fazer senão inventar seus amigos, ou quando menos, seus
companheiros de espírito?”.
Por fim, proponho a seguinte reflexão: “Não seria a
versão hipercontemporânea do Eu Lírico o "Eu Digital" - um perfil
elaborado, colocado nas redes sociais, nos sites de relacionamentos... espaços
onde temos liberdade para criar uma "persona ideal" - ser quem
queremos, como queremos, quando queremos - em consonância com o que imaginamos
se espera de nós - e "vender" essa imagem sem nos expormos, sem
nos revelarmos, sem correr o risco de que alguém bata à nossa porta e vislumbre
nosso verdadeiro Eu?
PS: Acabei de receber uma mensagem vinda de um hospital bibliotecário, encaminhada pelo Eu Lírico - meu conhecido de longa data. Agonizante, ele afirma temer ser
substituído
em todas instâncias pelo "Eu Digital" e estar prestes a editar sua
Nota de Falecimento.
Tomada, portanto, por sua dor decidi criar a campanha: "Salve o Eu Lírico", da qual para participar basta escrever, pensar, criar.
EU LÍRICO 0007
O pensar do artista
HIPERLINK
1 – CURIOSIDADE
ESTÁTUA
DE DRUMMOND NA ORLA DE COPACABANA, UMA HOMENAGEM DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO AO
CENTENÁRIO DO POETA.
EU
LÍRICO 0008
Quem passa todo os dias pelo calçadão
de Copacabana,
nas imediações do Posto 6, no Rio de Janeiro, já se
acostumou com a silhueta de um velhinho que desde que ali chegou, nos idos de
30 de outubro de 2002, nunca mais abandonou a postura circunspecta e
contemplativa.
A Estátua de Carlos Drummond de
Andrade, imortalizado pelas mãos do mineiro Leo Santana, foi lavrada em bronze
com tal maestria que hoje é um verdadeiro chamariz de turistas e curiosos. É
comum ver filas de pessoas que ao lado dela se sentam para tirar fotos,
conversar, ou simplesmente olhar a paisagem fazendo companhia ao taciturno
poeta.
Às vésperas de sua inauguração, quando
ainda estava envolta em plástico da cabeça aos pés, ocorreu um fato curioso:
policiais do 19º BPM chegaram a abrir chamada via rádio sobre a localização de
um indivíduo possivelmente asfixiado, confundindo a estátua do poeta com a
vítima de um crime.
HIPERLINK 2 – YVES STALLONI
CONHEÇA
Yves Stalloni é professor de letras
modernas, doutor em letras e leciona na Universidade de Toulon, na França. É
autor de várias obras sobre metodologia e crítica literária.
HIPERLINK 3 - FERNANDO PESSOA
EU LÍRICO 0005
SAIBA MAIS
Fernando Pessoa (1888 –
1935)
Um dos maiores expoentes da
Literatura Portuguesa, desdobrou-se, como poeta, em múltiplas personalidades ou
heterônimos: Álvaro de Campos, Ricardo Reis,
Alberto Caieiras e Bernardo
Soares.
HIPERLINK 4 - JOSÉ
E agora José?
A festa acabou,
A luz apagou,
O povo sumiu...
Está sem mulher,
Está sem discurso...
Tudo acabou,
Tudo fugiu
(fragmento de “José”, Carlos Drummond
de Andrade. São Paulo: Companhia das Letras, 2012)
HIPERLINK
5 – A ERA DO VAZIO
CONCEITO
A expressão “A Era do Vazio” foi
cunhada pelo filósofo francês,
Gilles Lipovetsky em 1983, ao
publicar o livro homônimo, no qual
afirma que na sociedade contemporânea
o desejo e escolhas pessoais são
cada vez mais valorizados em detrimento
do outro, da comunidade.