NA
ESCOLA SEM APRENDER A LER!
Por
Sandra Bozza*
“(...) não é a aquisição do sistema de escrita em si que
desenvolve o intelecto, mas seu uso em uma multiplicidade de funções. A escrita
afeta a nossa maneira de pensar nos processos de leitura, na interpretação, na
discussão e na produção de textos.”
Liliana Tolchinsky
Landsmann
Cá estamos nós, em 2014, num
processo de requentamento do tema referente à aprendizagem e ao ensino da
leitura no Brasil.
A despeito dos exames
nacionais e locais, da formação continuada dos educadores, do desenvolvimento
de projetos relacionados à literatura e à contação de histórias, bem como das
verbas destinadas à melhoria do ensino e para o aumento do IDEB (Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica), o desempenho leitor de nossos alunos ainda
está aquém do desejado. Os últimos resultados do ENEM (Exame Nacional do Ensino
Médio) e do PISA
(Programa Internacional de Avaliação de Alunos) servem como uma Ressonância
Magnética, onde fica evidente, detalhadamente, a distância entre o que se
necessita realizar nessa área do ensino o que se faz hoje na escola.
Não é o primeiro resultado
do PISA que nos move a elucubrar sobre o não desenvolvimento de habilidades e
competências leitoras de nossos brasileirinhos. Desde o primeiro ano dessa
avaliação externa estamos nos mantendo, proporcionalmente, nos mesmos
patamares! Ou seja, quase metade (49,2%) dos alunos brasileiros (com 15 anos,
independente do ano escolar em curso) não chega a alcançar o nível 2 de desempenho.
Isso significa que esses adolescentes não demonstram capacidade de deduzir informações de um texto lido, não estabelecem relações (de dependência
como causa e efeito, equivalência, comparação) entre as partes desse texto e não
conseguem estabelecer relações com experiências pessoais ou informações
externas ao próprio texto.
Todavia, seria interessante
que pudéssemos nos ater no aspecto relacional dessa “pouca aprendizagem” de
leitura que vem se evidenciado há tempos em nosso país.
Se muitos esforços estão sendo
envidados para que a escola torne-se cada vez mais competente nessa mediação,
por que os alunos não se apropriam, de fato, desses saberes?
Por que, apesar dos
trabalhos propostos com livros paradidáticos e literários, as aulas de Língua Portuguesa,
principalmente, do segundo segmento do Ensino Fundamental (do 5º ao 9º ano) e
do Ensino Médio afastam tanto o aluno da leitura e inclusive aqueles que se
mostraram bons leitores na Educação Infantil e nos anos iniciais deixam de
sentir a leitura como uma atividade prazerosa?
Por que alguns dos livros
didáticos (e manuais ou apostilas) ainda apresentam separadamente a parte da
leitura, vocabulário, interpretação, gramática e ortografia?
A resposta pode ser dada por
milhares de professores que têm uma prática ativa de leitura com seus alunos! Alguns
municípios do Brasil conseguiram construir um lastro de conhecimentos básicos
bastante interessantes sobre a leitura,
o ensino e o aprender a ler. Essa base poderia ser sintetizada nas palavras
de Jean Foucambert,
quando afirmou em 1976, na França: [...] atividades em torno do texto e de
incitação à leitura
ocorrerão com regularidade. Pois, ainda
uma vez, aprender a ler é ler, é ter a possibilidade de ler, no tempo em que
passa na escola.
Isso ocorre quando a escola concebe-se
como poderosa fonte de conscientização sobre o valor social da leitura,
enfatizando, à comunidade, seus usos e sua capital importância. Dessa forma, assume
para si duas tarefas fundamentais: imbuir-se de argumentos para conquistar
leitores e organizar-se metodologicamente para práticas interessantes,
procedentes e estimulantes. Porque, como quer Mempo Giardinelli, o que se busca é
semear o desejo de ler e estimular todas as práticas de leitura.
Ler e escrever se aprende
lendo, escrevendo e pensando sobre a língua escrita. Assim, utilizar a leitura
e a escrita para interação social dos alunos, dentro e fora da escola, física
ou virtualmente, é o ponto de partida e de chegada para o desenvolvimento das
competências linguísticas. Mais do que isso: alunos e alunas que vivenciam
essas práticas, além de ampliarem as capacidades superiores do cérebro (atenção
voluntária, generalização, memória, abstração), encontram no ambiente escolar
um espaço onde têm garantidas sua vez e sua voz. Dificilmente desenvolverão
aversão pelas aulas e Língua Portuguesa ou à leitura, pois estarão sendo
formados por outros parâmetros de sociabilidade, respeito e acesso ao mundo
real e não apenas por textos acadêmicos ou escolares. Dificilmente terão
dificuldade de responder às questões colocadas na Prova Brasil, SAEB ou qualquer exame
externo, porque a essas pessoas foi dada a possibilidade de aprender
concomitantemente a relação de dependência
entre significado e código, ou seja, a importância de conseguir a
ideia que se faz de algo e o modo como ela é expressa!
Se ler é depreender o
sentido (significado) do texto, esse sentido é dado graças a um conjunto de
códigos. São os conteúdos de Língua Portuguesa (unidade temática, paragrafação,
coesão, argumentação...), bem empregados e articulados, que possibilitarão a compreensão
global e das partes dos textos que circulam socialmente. A forma como é
encaminhada a reflexão sobre mesmos é o ponto nevrálgico da aprendizagem da
leitura, pois essa prática tanto pode priorizar a classificação ou auxiliar a
compreensão do tema a partir das estruturas linguísticas.
Muitas vezes, o eixo uso-reflexão-uso, orientado nas Diretrizes Nacionais para ensino do português
como língua materna há mais de dez anos, não é garantido na sistematização
dessa área e, em muitos casos, os alunos, quando não percebem a funcionalidade
do que aprendem, se evadem da sala de aula. E essa evasão pode se dar nos dois sentidos:
no literal, quando abandonam fisicamente os bancos escolares (o que hoje já é
formalmente controlado) e no sentido metafórico, quando seus pensamentos, desejos
e saberes, mentalmente, fogem do tempo de aula. São esses, os evadidos, que
socialmente poderão se tornar sujeitos alienados, individualistas e, sobretudo,
não terão a competência de compreender a complexidade de uma sociedade
organizada e legalizada pela linguagem escrita.
O que cabe á escola é
colocar o aluno em estado de letramento em seus primeiro anos de escolaridade,
de modo que ele, desde muito cedo, perceba a importância desse conhecimento e
as possibilidades que pode ter um leitor competente e deseje se apropriar dessa
forma complexa e sofisticada de linguagem que é escrita.
* Saiba mais sobre a linguista, filósofa, psicóloga, socióloga e escritora Sandra Bozza.
Professora de
Metodologia de Ensino da Língua Portuguesa, de Literatura Infantil, de
Linguística e de Metodologia de Ensino de Alfabetização e Letramento, em 1991,
fez parte do grupo que produziu a Proposta de Alfabetização para o Currículo
Básico de Curitiba. Foi considerada pelo MEC como uma das cinco propostas mais
avançadas do País, e que anos mais tarde serviu de base referencial para os
Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa e para a Lei de
Diretrizes e Bases (LDB 9394/96), na questão de avaliação de Língua Portuguesa.
Entre seus livros lançados mais relevantes estão: Na escola sem aprender? Isso não!; Avaliação e aprendizagem: entre o pensar e o fazer; Língua Portuguesa a Partir do Texto (4
Volumes) e Coleção Trabalhando com a
Palavra Viva (2 Volumes).