terça-feira, 29 de abril de 2014

O EU LÍRICO

OU

NOTA DE ESCLARECIMENTO
Cláudia S. Coelho*


EU LÍRICO 0001


Lutar com palavras
É a luta mais vã.

Carlos Drummond de Andrade

Concordo com Drummond em gênero , número e grau.


Sim, as palavras, assim como as ideias, vêm, vão, e nada nem ninguém consegue detê-las. Elas assumem corpo, identidade e chegam a se apropriar de quem as usa – em especial, escritores, escritores, compositores... todos que fazem dela sua matéria-prima.

É preciso, no entanto, discernir o criador da criatura; o autor da obra.

Exatamente por isso decidi escrever esta nota de esclarecimento sobre o Eu Lírico.

Meses atrás postei o poema Cosmopo-vita  - ou Diálogo com o Vazio [cuja versão reduzida segue abaixo], o qual deu margem a tamanha controvérsia, a ponto de ter recebido uma enxurrada de e-mail de alguns conhecidos com o telefone de contato de seus psiquiatras. A polêmica chegou a tal ponto que me vi obrigada a escrever esta Nota de Esclarecimento:

-Não! Não estou deprimida! Introspectiva, talvez. Quiça meu Eu Lírico!  
A confusão entre narrador e autor, em especial em textos poéticos, é tamanha que por eu usar, por vezes, português castiço em meus textos, alguns de meus leitores acreditam que eu seja da “terrinha”, uma autêntica portuguesa.

O início desse poema nasceu há muito tempo e foi resgatado durante minha mudança – mudança de casa, mudança de vida, mudança... Ele estava em um caderninho de anotações junto a meus guardados e, por obra do mero acaso, aberto nas páginas abaixo. O texto, a princípio, tinha como foco uma bailarina, mas ao lê-lo, em outro momento de vida, optei por usá-lo como exercício, criando um Eu Lírico que se valesse de palavras que rimassem, fizessem sentido, gerassem tensão e se transformassem em imagens. Simples assim.

BOX – ESBOÇO DE COSMOPO-VITA


EU LÍRICO 0002

esboço de Cosmopo-Vita

COSMOPO-VITA OU DIÁLOGO COM O VAZIO
(na íntegra em http://ritualdoalimento.blogspot.com.br/2013/07/09-de-julho-cosmopo-vida.html)

Na ressaca do sono,
de noites perdidas,
tento, intento,
acercar-me de ti.

Vagando ao acaso,
no brilho do ocaso,
te testo, incesto,
Replicas por fim:

Sou o amor momento,
mero alento,
fugaz sentimento
sem nenhum intento...

Encontro fortuito,
sem qualquer intuito,
o Nada em si,
simples assim. 



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EU LÍRICO 0003

O que leva à pergunta:

- Mas afinal o que é o Eu Lírico? Tão descerrado; tão pouco compreendido.

Primeiramente um pouco de história.

O termo “lírico”, tem origem no latim, lyrìcus,a,um, de lyra,ae ou lira  - instrumento musical. Na antiguidade referia-se a uma composição poética para ser cantada com acompanhamento da lira e, por extensão de sentido, passou a definir uma obra em verso feita para canto, ou própria para ser musicada. Com a chegada do século XV, a palavra poética passou a ser declamada e afastou-se do som lírico, mas o termo continuou a ser ligado à produção literária, em especial à poética.

Voltando ao Eu Lírico – também chamado de eu Poético – este é o “eu” que fala no texto e não expressa, necessariamente, os sentimentos do autor, mas, sim, os do Eu Poético. Ele é a “voz” que fala no poema ou texto em prosa e expressa ideias, emoções, pensamentos, vivências... que podem coincidir ou não com as do escritor. A validade estética de um texto independe de ele representar ou não a verdade do autor. O autor é, portanto, livre para usar sua criatividade para ser quem ou o quê queira representar e para transformar a realidade da forma que lhe aprouver.

Sábias são as palavras do crítico Yves Stalloni, quanto à concepção do eu Lírico:

[...] O lirismo é a emanação de um eu – que o romantismo gostava de confundir com a pessoa dopoeta, mas que pode se apagar por detrás de uma de suas personagens.

STALLONI, Yves. Os gêneros literários. Rio de Janeiro: Difel, 2001, p.151

Portanto, o Eu Lírico que escolhi fala por mim, mas não representa quem Sou, como estou e reitero:


No entanto, cabe aqui uma ressalva, dificilmente alguém conseguirá escrever, falar, se expressar com propriedade sobre tristeza, amor, decepção sem nunca ter experienciado tais sentimentos, muito embora não seja preciso ter sido violentado para escrever a respeito da dor do estupro – o primordial é sentir empatia pelas pessoas que o foram, conseguir sentir na alma sua comoção, pesar, para não se tornar mero narrador de um discurso vazio - pois, como afirmou Fernando Pessoa – o poeta multifacetado, cujos heterônimos podem ser considerados diferentes eu Líricos -, em seu poema “Autopsicografia”: 

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EU LÍRICO 0004


O poeta é um fingidor. 
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
















Para conseguir se expressar com veracidade a maior parte dos escritores, atores, bailarinos artistas enfim, usam um recurso chamado “resgate”.

Usando como exemplo mais uma vez o estupro, o artista “mergulha” na personagem e “resgata” em sua memória afetiva momentos em que tenha sido violado em seus princípios e transpõe a intensidade dessa dor para seu Eu Lírico ou Poético.

Infelizmente, por desconhecimento, alguns não discriminam o ator da personagem; o autor do texto; o poeta do sofrimento. O que seria de Anthony Hopkins se ele tivesse em si Hannibal Lecter, o psicopata brilhantemente interpretado no filme “O Silêncio dos Inocentes”? Um ser sem qualquer traço de consciência. De Carlos Drummond de Andrade se fosse a própria encarnação de José, o foco de um de seus poemas? Um homem perdido; sem eira nem beira?

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Dizem que a vida imita a arte - que a arte imita a vida. Tanto faz, uma não vive sem a outra, uma não invalida a outra.

Artistas, de modo geral, são pessoas intensas que observam o mundo sob uma ótica distinta, taxados, por vezes, de modo pejorativo, como excêntricos.

Sua visão de mundo não condiz com a da sociedade do espetáculo, do hiperprazer, do hipermomento, do hipernada, do hipertudo – tão fugaz, tão efêmera - e esta às vezes, incomoda, toca a ferida, cutuca a casa de marimbondos dormente em nosso interior.

Vivemos na sociedade do “Vamos em frente que atrás vem gente!”, do “Cada um por si, Deus por todos”, da “Ausência e da Aparência” (ou da felicidade sem lembranças) – na Era do Vazio.

Não digo com isso que devamos nos deixar levar pela depressão, pelo negativismo, mas, sim, ter uma visão crítica de nosso momento. Caso contrário, os filhos, dos filhos, de nossos filhos, continuarão a viver um jogo de gato e rato, um jogo de aparências no qual - parafraseando José Saramago: “Viverão em uma espécie de Luna Park”, na “Caverna de Platão” vislumbrando, quando muito, parcas imagens da realidade, presos pelos grilhões do imediatismo, da ostentação, da tirania do cotidiano, da ilusão hedonista.

- Não! Não estou deprimida. Só desejo manter-me lúcida perante à sociedade do espetáculo.

Atenta e afastada do hiperuniverso que nos abarca e faz sofrer.

Quero, como já disse, ser íntegra comigo mesma. Minuto após minuto, dia após dia, sempre.

E nada mais apropriado do que uma citação de Fernando Pessoa para mostrar que o vazio não é uma invenção do homem contemporâneo:

“Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer senão inventar seus amigos, ou quando menos, seus companheiros de espírito?”.

Por fim, proponho a seguinte reflexão: “Não seria a versão hipercontemporânea do Eu Lírico o "Eu Digital" - um perfil elaborado, colocado nas redes sociais, nos sites de relacionamentos... espaços onde temos liberdade para criar  uma "persona ideal" - ser quem queremos, como queremos, quando queremos - em consonância com o que imaginamos se espera de nós -  e "vender" essa imagem sem nos expormos, sem nos revelarmos, sem correr o risco de que alguém bata à nossa porta e vislumbre nosso verdadeiro Eu?  

PS:  Acabei de receber uma mensagem vinda de um hospital bibliotecário, encaminhada pelo Eu Lírico - meu conhecido de longa data. Agonizante, ele afirma temer ser
substituído em todas instâncias pelo "Eu Digital" e estar prestes a editar sua Nota de Falecimento. 

Tomada, portanto, por sua dor decidi criar a campanha: "Salve o Eu Lírico", da qual para participar basta escrever, pensar, criar.  




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O pensar do artista




HIPERLINK 1 – CURIOSIDADE
ESTÁTUA DE DRUMMOND NA ORLA DE COPACABANA, UMA HOMENAGEM DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO AO CENTENÁRIO DO POETA.
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Quem passa todo os dias pelo calçadão de Copacabana, nas imediações do Posto 6, no Rio de Janeiro, já se acostumou com a silhueta de um velhinho que desde que ali chegou, nos idos de 30 de outubro de 2002, nunca mais abandonou a postura circunspecta e contemplativa.
A Estátua de Carlos Drummond de Andrade, imortalizado pelas mãos do mineiro Leo Santana, foi lavrada em bronze com tal maestria que hoje é um verdadeiro chamariz de turistas e curiosos. É comum ver filas de pessoas que ao lado dela se sentam para tirar fotos, conversar, ou simplesmente olhar a paisagem fazendo companhia ao taciturno poeta.
Às vésperas de sua inauguração, quando ainda estava envolta em plástico da cabeça aos pés, ocorreu um fato curioso: policiais do 19º BPM chegaram a abrir chamada via rádio sobre a localização de um indivíduo possivelmente asfixiado, confundindo a estátua do poeta com a vítima de um crime.

HIPERLINK 2 – YVES STALLONI
CONHEÇA
Yves Stalloni é professor de letras modernas, doutor em letras e leciona na Universidade de Toulon, na França. É autor de várias obras sobre metodologia e crítica literária.

HIPERLINK 3 - FERNANDO PESSOA

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SAIBA MAIS

Fernando Pessoa (1888 – 1935)
Um dos maiores expoentes da Literatura Portuguesa, desdobrou-se, como poeta, em múltiplas personalidades ou heterônimos: Álvaro de Campos, Ricardo Reis,
Alberto Caieiras e Bernardo Soares.

HIPERLINK 4 - JOSÉ

E agora José?
A festa acabou,
A luz apagou,
O povo sumiu...
Está sem mulher,
Está sem discurso...
Tudo acabou,
Tudo fugiu
(fragmento de “José”, Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Companhia das Letras, 2012)

HIPERLINK 5 – A ERA DO VAZIO
CONCEITO
A expressão “A Era do Vazio” foi
cunhada pelo filósofo francês,
Gilles Lipovetsky em 1983, ao
publicar o livro homônimo, no qual
afirma que na sociedade contemporânea
o desejo e escolhas pessoais são
cada vez mais valorizados em detrimento
do outro, da comunidade.





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