segunda-feira, 11 de agosto de 2014

NA ESCOLA SEM APRENDER A LER!


ISSO PODE ACONTECER?



Por Sandra Bozza*


“(...) não é a aquisição do sistema de escrita em si que desenvolve o intelecto, mas seu uso em uma multiplicidade de funções. A escrita afeta a nossa maneira de pensar nos processos de leitura, na interpretação, na discussão e na produção de textos.”
Liliana Tolchinsky Landsmann
Cá estamos nós, em 2014, num processo de requentamento do tema referente à aprendizagem e ao ensino da leitura no Brasil.
A despeito dos exames nacionais e locais, da formação continuada dos educadores, do desenvolvimento de projetos relacionados à literatura e à contação de histórias, bem como das verbas destinadas à melhoria do ensino e para o aumento do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), o desempenho leitor de nossos alunos ainda está aquém do desejado. Os últimos resultados do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) e do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) servem como uma Ressonância Magnética, onde fica evidente, detalhadamente, a distância entre o que se necessita realizar nessa área do ensino o que se faz hoje na escola.
Não é o primeiro resultado do PISA que nos move a elucubrar sobre o não desenvolvimento de habilidades e competências leitoras de nossos brasileirinhos. Desde o primeiro ano dessa avaliação externa estamos nos mantendo, proporcionalmente, nos mesmos patamares! Ou seja, quase metade (49,2%) dos alunos brasileiros (com 15 anos, independente do ano escolar em curso) não chega a alcançar o nível 2 de desempenho. Isso significa que esses adolescentes não demonstram capacidade de deduzir informações de um texto lido, não estabelecem relações (de dependência como causa e efeito, equivalência, comparação) entre as partes desse texto e não conseguem estabelecer relações com experiências pessoais ou informações externas ao próprio texto. 
Todavia, seria interessante que pudéssemos nos ater no aspecto relacional dessa “pouca aprendizagem” de leitura que vem se evidenciado há tempos em nosso país.
Se muitos esforços estão sendo envidados para que a escola torne-se cada vez mais competente nessa mediação, por que os alunos não se apropriam, de fato, desses saberes?
Por que, apesar dos trabalhos propostos com livros paradidáticos e literários, as aulas de Língua Portuguesa, principalmente, do segundo segmento do Ensino Fundamental (do 5º ao 9º ano) e do Ensino Médio afastam tanto o aluno da leitura e inclusive aqueles que se mostraram bons leitores na Educação Infantil e nos anos iniciais deixam de sentir a leitura como uma atividade prazerosa?
Por que alguns dos livros didáticos (e manuais ou apostilas) ainda apresentam separadamente a parte da leitura, vocabulário, interpretação, gramática e ortografia?
A resposta pode ser dada por milhares de professores que têm uma prática ativa de leitura com seus alunos! Alguns municípios do Brasil conseguiram construir um lastro de conhecimentos básicos bastante interessantes sobre a leitura, o ensino e o aprender a ler. Essa base poderia ser sintetizada nas palavras de Jean Foucambert, quando afirmou em 1976, na França: [...] atividades em torno do texto e de incitação à leitura ocorrerão com regularidade. Pois, ainda uma vez, aprender a ler é ler, é ter a possibilidade de ler, no tempo em que passa na escola.
Isso ocorre quando a escola concebe-se como poderosa fonte de conscientização sobre o valor social da leitura, enfatizando, à comunidade, seus usos e sua capital importância. Dessa forma, assume para si duas tarefas fundamentais: imbuir-se de argumentos para conquistar leitores e organizar-se metodologicamente para práticas interessantes, procedentes e estimulantes. Porque, como quer Mempo Giardinelli, o que se busca é semear o desejo de ler e estimular todas as práticas de leitura.
 Ler e escrever se aprende lendo, escrevendo e pensando sobre a língua escrita. Assim, utilizar a leitura e a escrita para interação social dos alunos, dentro e fora da escola, física ou virtualmente, é o ponto de partida e de chegada para o desenvolvimento das competências linguísticas. Mais do que isso: alunos e alunas que vivenciam essas práticas, além de ampliarem as capacidades superiores do cérebro (atenção voluntária, generalização, memória, abstração), encontram no ambiente escolar um espaço onde têm garantidas sua vez e sua voz. Dificilmente desenvolverão aversão pelas aulas e Língua Portuguesa ou à leitura, pois estarão sendo formados por outros parâmetros de sociabilidade, respeito e acesso ao mundo real e não apenas por textos acadêmicos ou escolares. Dificilmente terão dificuldade de responder às questões colocadas na Prova Brasil, SAEB ou qualquer exame externo, porque a essas pessoas foi dada a possibilidade de aprender concomitantemente a relação de dependência entre significado e código, ou seja, a importância de conseguir   a ideia que se faz de algo e o modo como ela é expressa!
Se ler é depreender o sentido (significado) do texto, esse sentido é dado graças a um conjunto de códigos. São os conteúdos de Língua Portuguesa (unidade temática, paragrafação, coesão, argumentação...), bem empregados e articulados, que possibilitarão a compreensão global e das partes dos textos que circulam socialmente. A forma como é encaminhada a reflexão sobre mesmos é o ponto nevrálgico da aprendizagem da leitura, pois essa prática tanto pode priorizar a classificação ou auxiliar a compreensão do tema a partir das estruturas linguísticas.
Muitas vezes, o eixo uso-reflexão-uso, orientado nas Diretrizes Nacionais para ensino do português como língua materna há mais de dez anos, não é garantido na sistematização dessa área e, em muitos casos, os alunos, quando não percebem a funcionalidade do que aprendem, se evadem da sala de aula. E essa evasão pode se dar nos dois sentidos: no literal, quando abandonam fisicamente os bancos escolares (o que hoje já é formalmente controlado) e no sentido metafórico, quando seus pensamentos, desejos e saberes, mentalmente, fogem do tempo de aula. São esses, os evadidos, que socialmente poderão se tornar sujeitos alienados, individualistas e, sobretudo, não terão a competência de compreender a complexidade de uma sociedade organizada e legalizada pela linguagem escrita.
O que cabe á escola é colocar o aluno em estado de letramento em seus primeiro anos de escolaridade, de modo que ele, desde muito cedo, perceba a importância desse conhecimento e as possibilidades que pode ter um leitor competente e deseje se apropriar dessa forma complexa e sofisticada de linguagem que é escrita.

* Saiba mais sobre a linguista, filósofa, psicóloga, socióloga e escritora Sandra Bozza

Professora de Metodologia de Ensino da Língua Portuguesa, de Literatura Infantil, de Linguística e de Metodologia de Ensino de Alfabetização e Letramento, em 1991, fez parte do grupo que produziu a Proposta de Alfabetização para o Currículo Básico de Curitiba. Foi considerada pelo MEC como uma das cinco propostas mais avançadas do País, e que anos mais tarde serviu de base referencial para os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa e para a Lei de Diretrizes e Bases (LDB 9394/96), na questão de avaliação de Língua Portuguesa. Entre seus livros lançados mais relevantes estão: Na escola sem aprender? Isso não!; Avaliação e aprendizagem: entre o pensar e o fazer; Língua Portuguesa a Partir do Texto (4 Volumes) e Coleção Trabalhando com a Palavra Viva (2 Volumes).

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